terça-feira, 4 de novembro de 2014

"Ai se eu te pego" - Reflexões da dinâmica psicossocial a partir do desenvolvimento do gênero sertanejo no Brasil

“Ai se eu te pego” verso da música de Michel Teló que faz muito sucesso nos últimos dias não é só uma espécie de cantada, mas também uma ameaça.
A cultura popular brasileira tem produzido dois fenômenos dignos de nota e reflexão. O primeiro é o fenômeno do sertanejo universitário, gênero musical claramente atrelado à um estilo de vida muito especifico. O segundo é o fenômeno dos e das assistentes de palco de programas de auditório – como os assistentes das apresentadoras Eliana e Ana Hikmam além das já muito comentadas, por seus atributos físicos, paniquetes – como sugestão de ideal de beleza e comportamento.
Estes dois fenômenos são sugestivos do processo de transformação sócio-histórico-cultural que o Ocidente tem passado nos últimos séculos. Falaremos detidamente das origens deste processo no próximo texto, por hora vamos apenas apresentar o problema.
Ora, o problema é o que o dr. Anderson C. Pires chamou de “medo de alienação do ego” e também acoplado a isso a “síndrome de aletofobia” discutida por esse sociólogo e teólogo (PIRES, 2011, p. 18).
O que significam estas expressões? Qual a relação delas com o sertanejo universitário e com assistentes de palco?

O Sertanejo Universitário E O Principio Político Da Plausibilização Do Eros.


O sertanejo universitário é um gênero musical na moda hoje em dia. Nomes como Michel Teló e outros tem ganhado reputação e muito dinheiro com sucessos como: Paradinha, Chora e me liga, Ai se eu te pego e outros.
O que o conteúdo destas letras revelam. Elas revelam o que o professor Pires chamou de princípio de plausibilização política do Eros (PIRES, 2011, p. 17).
Isso significa que no período em que chamamos de pós-modernidade, ou modernidade líquida, o prazer passou a se destacar como legitimação dos critérios de escolha dos indivíduos, substituindo os princípios éticos como orientadores da ação.
As músicas citadas comportam em sua linguagem mensagens de duplo sentido que constantemente falam de ações cotidianas e corriqueiras, mas que ao mesmo tempo denotam forte conteúdo sexual.

Nesta linguagem ambígua revela-se os dois princípios hermenêuticos da estrutura psicológica do mundo pós-freudiano. O principio das disposições de “medo de privação, que é o principio da morte, o Tanatos, que representa os resquícios da sociedade proibitiva. O segundo é a racionalidade da entrega ao desejo (síndrome de consumismo), que produz a disposição de romper com tradições em nome da promessa de prazer que constitui a psicologia de “gratificação imediata” (PIRES, 2010).
Estas disposições não se restringem ao conteúdo das letras do sertanejo universitário, ao contrário, este ultimo é um elemento dos muitos produtos culturais que poderiam – e que serão – analisados sob este prisma.
Enfim, a psicologia da gratificação imediata transborda do conteúdo das letras do sertanejo universitário e passam a permear a vida dos seus consumidores. A prova mais cabal desse fato é a multiplicação das baladas deste estilo em todo país. Estas baladas tem “arrastado” milhões de pessoas, tem movimentado centenas de milhões na economia e tem se constituído como o ideal de felicidade/satisfação de outra centena de milhões de pessoas que por motivos diversos tem permanecido à margem do processo.



Síndrome De Gratificação Imediata E O Medo De Ser Rejeitado.


Pois, a síndrome da gratificação imediata, segundo o dr. Pires, é a base fundamental da “síndrome de aletofobia” e do “medo de alienação do ego” (PIRES, 2010).
Esta síndrome da gratificação imediata esta então diretamente relacionada com o fenômeno que o sociólogo britânico Anthony Giddens chamou de destradicionalização da sociedade Ocidental.
Neste fenômeno o que presenciamos é um relaxamento ético e moral baseado na desvalorização de conteúdos dos valores tradicionais orientadores da conduta em nome do ideal de realização/satisfação imediata, no presente. É a troca do bem pelo bom.
O que a música e o estilo de vida de seus consumidores expressam é um senso de permissividade que busca nas suas práticas, principalmente as sexuais, a realização de um ideal de felicidade. O que não se revela aí, contudo, é a política da insaciabilidade, pois, uma vez abandonados os valores para os comportamentos tradicionais o medo de alienação do ego, compreendido como uma incapacidade de sofrer qualquer perda coloca em movimento a estrutura psicológica de busca de satisfação irrefreável. Porque a falta dos padrões gera a incerteza sobre a validade da escolha, como uma escolha certa.
As letras das músicas revelam isto.
A satisfação do eu é sempre buscada na relação que o “eu” tem com o “tu”.
Pires (2011) afirma que nas relações que os indivíduos estabelecem revela-se o “déficit ontológico” que marca a existência humana. Este déficit marca a consciência que cada um adquire a partir da interação que estabelece com outros sujeitos.
O medo de ser rejeitado é produzido pela expectativa que se move do “alter” para o “ego” na interação e é decorrente tanto da imagem que se forma nesse processo quanto da esmagadora força da incapacidade de perder que comentamos acima quando falamos da síndrome de gratificação imediata.
 
Nessas interações cada um acaba por avaliar-se moral, estética ou cognitivamente por meio da eleição dos predicados considerados mais desejáveis. “Por esta razão, há sempre a intenção de se construir uma “autoimagem” condicionada pela expectativa que se move do “tu” em relação ao “eu” no processo de interatividade” (PIRES, 2011).
O medo de ser rejeitado é produzido pela expectativa que se move do “alter” para o “ego” na interação e é decorrente tanto da imagem que se forma nesse processo quanto da esmagadora força da incapacidade de perder que comentamos acima quando falamos da síndrome de gratificação imediata.


A síndrome de aletofobia e os assistentes de palco.



“A necessidade de ser aceito pelo outro acaba produzindo no “eu” a necessidade de alterar os elementos estruturantes constitutivos da própria identidade” (PIRES, 2011). Passamos a desejar e a assumir os predicados alheios como meio de se construir uma socialização que não produza o trauma da negação e da autonegação.
Curiosamente acabamos por potencializar o medo de sermos rejeitados, pois damos o primeiro passo nos auto-rejeitando e fugindo à vida autentica.
As “coleguinhas de palco” e os “bombados” entram nesse jogo como as formulas prontas para aqueles que tem aversão à perda. Eles e elas projetam no imaginário popular um ideal de “desejabilidade” e com isso reforçam:
a) A síndrome da gratificação imediata. Na medida em que acena que o ideal de satisfação apregoado pelas músicas do sertanejo universitário é alcançável a qualquer um que se dedique ou que se possa pagar por isso. A qualquer um que consiga se auto-afirmar por meio de um corpo desejável.
b) reforçam a produção de identidades não - autenticas, uma vez que as relações estabelecidas são mantidas com base em uma estrutura de déficit onde uma das partes – ou as duas – estará sempre sentido-se descompensada em relação à outra e seus atributos. Uma vez que o indivíduos entra numa relação nunca com seus próprios predicados, mas com aqueles que imagina ser agradável e desejável pelo outro.
A desvalorização das próprias qualidades, à afirmação de predicados que não são os propriamente meus, mas afirmo possuir, isso conceituou-se de vida não - autentica, ou como diz o dr. Pires com maior precisão: síndrome de aletofobia. Uma incapacidade de reconhecer os próprios predicados e vivenciá-los associada à compulsiva tendência a copiar os predicados de terceiros. Tendência, que como foi dito, existe em função da aversão pela perda e medo de perder. Síndrome de aletofobia significa, portanto, a disposição contemporaneamente naturalizada de se viver por papeis que ocultem a verdade de quem o indivíduo realmente é.
Uma vida marcada peal busca e pelo medo. A busca eterna da satisfação – ou dito de uma forma mais acertada: a aversão por perder qualquer ínfima satisfação – e o medo de ser flagrado na realidade de que as qualidades que o “eu” possui não são aquelas que são socialmente desejáveis.
“Ai se eu te pego”, em nossos dias é mais que uma cantada, cantada nas noites de diversão daqueles que estão ansiosos por autoafirmar performaticamente seu potencial de atratividade e assim compensar seu subterrâneo medo de perder a possibilidade de sorver algum prazer que justifique a própria existência. É também uma ameaça que força todos que vivem sem uma estrutura valorativa firmemente estabelecida a se esconder sob uma máscara.

Referencial bibliográfico:

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
GIDDENS, Anthony. Transformação da Intimidade: sexualidade, amor e erotismo. São Paulo, UNESP, 1993.
______. As consequências da modernidade.São Paulo: UNESP, 1991.
TAVARES, Gilson. Os males da vida moderna e da dependência química. Disponível em: < http://www.webartigos.com/artigos/os-males-da-vida-moderna-e-a-dependencia-quimica/16369/>
______. A vida em uma sociedade pós-tradicional. In: Em defesa da sociologia. São Paulo: Editora UNESP, 2001, p. 21 – 95.
LYOTARD, Jean François. O pós-moderno. Rio de Janeiro: J.O. Editora, 1978.
PIRES, Anderson Clayton. Síndrome de aletofobia e cultura de repressão. In: Psicoteologia. São Paulo: Ano XXI, nº 26, I Semestre 2010, p. 16 – 20.


Beijo na boca - Um breve resumo da história social do beijo na boca

Beija eu;
Beija eu;
Deixa que eu...
Beija eu.

E receba o que seja seu
Anoiteça e amanheça eu

Seja eu,
Deixa que eu seja eu.
E aceita
O que seja seu.
Então deita e aceita eu.

Molha eu,
Seca eu,
Deixa que eu seja o céu
E receba
O que seja seu.
Anoiteça e amanheça eu.

Então beba e receba
Meu corpo no seu corpo,
Eu no meu corpo,
Deixa,
Eu me deixo
Anoiteça e amanheça



Marisa Monte.


                A forma de expressar afetividade e intimidade em público em nossa moderna sociedade ocidental ainda é o beijo. Em romances, filmes, novelas e outras expressões artísticas o beijo figura como forma de demonstração da intimidade, da proximidade e do desejo de estar junto. A ideia transmitida na música acima é a de união, a união dos corpos por meio do ato de beijar. No beijo há um sentido antropofágico e de certa uma vontade de posse, também presente no ato sexual, é isso que afirma o filosofo Otto Best. “O sentimento amoroso carrega a intenção de incorporar, de comer o objeto de nosso afeto. O beijo é a manifestação possível desse desejo”, afirma.
            A tradição de roçar lábios com lábios provavelmente veio do Oriente há séculos, possuía uma ética e uma moral bem diferentes da que vige em nossos dias.
Através dos séculos de sua existência o beijo passou a designar, nas culturas em que ele esteve presente um sinal de aproximação e de inclusão. Mas, por trás do fato de que colocar a língua na boca de outra pessoa e partilhar saliva alheia ter ganhado um significado diferente daquele da antiguidade, podem estar as sucessivas mudanças sociais e o atual critério legitimador da tomada de decisões em nossa destradicionalizada sociedade ocidental. O que interessa esse ato tão intimo à sociologia? É o que veremos a seguir. 
            O registro mais antigo sobre o beijo na boca, foi encontrado em um livro védico que data de aproximadamente 1200 a C., o Satapatha[1], e diz: “amo beber o vapor dos seus lábios”. Relativamente próximo desta data e ao contexto geográfico em que foi escrito temos o Mahabarata[2], mas com um texto mais explicito em relação a forma de beijar ele diz: “Pôs a sua boca em minha boca, fez um barulho e isso produziu em mim prazer”.
Somente mais tarde, entre 400 a 200 d. C. O Kama Sutra apresentou uma versão mais amadurecida do assunto trazendo cerca de 200 passagens detalhando a moral e a ética do beijo. Nele se descreve, por exemplo, os três tipos de beijo que uma moça daquela sociedade podia ter acesso: o beijo “nominal”, o “palpitante” e o de “toque”.
Assim também a sociedade romana que assimilou a prática do beijo na boca também dividiu a pratica de beijar em três convenções, adquirida provavelmente a partir das conquistas que o império romano empreendeu sobre parte da Ásia a partir do século IV a C. Em Roma havia o oscupulum, o beijo de amizade; o bastium, mais sensual, entre homem e mulher; e o savium descrito pelo poeta como “de língua, voluptuoso e vergonhoso”.
Os gregos não ficaram de fora e também aderiram a pratica do beijo na boca sujeitando-a aos seus próprios contornos culturais dando-lhe funções quase burocráticas. Beijava-se para selar um acordo e para demonstrar respeito, cidadãos de mesmo nível social encostavam os lábios, se um dos cidadãos fosse de uma casta inferior o beijo era no rosto e se a casta fosse muito inferior, o que pertencia a casta inferior deveria beijar os pés daquele que era superior.

            Esta tradição foi transmitida ao longo dos séculos e foi incorporada de diversas formas, a igreja cristã, por exemplo, sacralizou o beijo ao incorporá-lo como forma de culto instando os fiéis a beijar os pés dos santos, durante o século IV d. C., e tentou banir a prática do beijo no século XII[3]. Curiosamente no século XVII o savium romano voltou com força, principalmente entre os franceses, o período coincide com o acontecimento da “revolução das luzes” no continente europeu e a expressividade com a qual os franceses se beijavam rendeu ao beijo de língua o apelido dado pelos puritanos ingleses, anos mais tarde, ao savium de beijo francês, apelido este que vigora até hoje.
            Mas nem todos os povos conheceram esta prática, as etnias indígenas no Brasil, por exemplo, são totalmente estranhas à prática de beijar na boca e os incas pensavam que se duas pessoas tocassem uma na boca da outra a alma de um deles poderia ser sugada.
            Resta-nos perguntar: por que na sociedade contemporânea a prática de beijar torna-se uma ação tão importante?
            O psicanalista francês Charles Melman (apud TAVARES, 2009) afirma que o homem contemporâneo prioriza a estética em detrimento da ética e que o prazer tornou-se critério de legitimação das escolhas feitas hoje em dia. “Hoje a saúde mental já não se origina mais da harmonia com o ideal de cada um, mas do objeto que possa trazer satisfação. Não há limites... Essa nova economia psíquica é organizada pela exibição de prazer e implica em novos deveres, dificuldades e sofrimentos. (...) A posição ética tradicional, metafísica, política, que permitia às pessoas orientar seu pensamento, está em falta. O excesso se tornou a norma” (TAVARES, 2009).
            Concordando com Melman, o sociólogo Anthony Giddens (1993) afirma que é a mudança social de uma organização tradicional para uma destradicionalizada que “inverte” a pauta de temas onde a compulsão torna-se normal, ou melhor, onde torna-se comum aquilo que fora, em outros tempos, considerado patológico.
Giddens enumera duas razões para justapôr compulsão/vício à tradição: a primeira é nos concentrarmos nos traços compulsivos da modernidade como tal; a segunda é que o tema do vício proporciona um esclarecimento inicial das características de uma ordem pós-tradicional.
            Nas sociedades pré-modernas, a tradição e a rotinização da conduta estão relacionadas uma à outra. Na sociedade pós-tradicional, ao contrário, a rotinização torna-se vazia, a menos que ajustada aos processos de um tipo de monitoramento institucional que ofereça discursivamente razões para tal.
Não há lógica ou autenticidade moral em fazer hoje o que fizemos ontem. Por isso faz sentido dissociar praticas sociais, como o beijo de seu contexto inicial de regulação de interações sociais conectando-o à uma nova forma de interação social como a prevalência do desejo libidinoso como afirma Melman e sem nenhum fundo moral ou ético como no passado, senão o da instituição do primado do desejo de satisfação do ego dissociado de qualquer norma social extra-indivíduo.
            Ao analisar estes aspectos que encontram em fatores aparentemente transitórios e sem significado aspectos do macro-social, quer dizer, nos comportamentos individuais traços da cultura e da maneira de ser de um povo a sociologia pode explicar motivações de ações que aparentemente não teriam ligação senão com uma opção individual. A sociologia não implica em ação e sim na compreensão dos homens e mulheres, suas instituições, sua história, suas paixões. O sociólogo tem então como seu habitat natural a reunião humana.
            A mudança da função do beijo, a sua banalização no cotidiano contemporâneo é um forte indicio da ruptura da modernidade com a tradição. Nesta ruptura pode se perceber o indicio da sociedade hedocapitalista tanto nos lucros que a indústria romântica afere com suas produções cinematográficas, literárias ou musicais quanto na prerrogativa altamente individual que o beijo, no ficar, no namoro ou no casamento ganhou.
            Ao se beijar hoje, buscamos nos aproximar de quem beijamos, um traço da tradição ainda está presente, pois o ato indica aproximação. Porém, mais forte do que uma função social de aproximação esta o teor altamente prazeroso que buscamos usufruir ao beijarmos.


[1]             Um livro de textos sagrados em que se baseia o bramanismo.
[2]    Poema épico com mais de 200 mil versos compilados em aproximadamente 1000 a C., ambos os textos, ibidem, foram escritos no Oriente por povos hindus.
[3]    O Papa Inocêncio III travaria uma verdadeira cruzada contra o beijo banindo-o dos ritos religiosos e proibindo-o na vida secular. “Beijo com objetivo de fornicação é pecado mortal, mesmo que a fornicação não se consume”, dizia a Sua Santidade.


Sobre o Machismo e a cultura da racionalização dos relacionamentos


Sobre a dinâmica cultural capitalista e o machismo nos relacionamentos cotidianos - uma reflexão.
(a narrativa abaixo realmente aconteceu, mas por motivos de exclerose precoce o autor (eu) teve que substituir os nomes dos personagens pois já não os lembrava no momento da escrita)


O dia estava chuvoso hoje. Por esse motivo, e pelo excesso de trabalho que me mantinha há alguns dias trancafiado em casa indo apenas para o colégio e voltando, decidi corrigir algumas provas num café próximo à minha casa. Até aí tudo bem, nada de estranho. O que ocorreu chegando lá que é o que eu gostaria de comunicar.
Estava eu a tomar café e a distribuir notas vermelhas, como todo professor costuma fazer em seu (des)gosto da profissão quando ali chegou também um jovem e belo casal.
Chamavam a atenção, eram realmente bonitos. Ambos. Ele, negro, alto, atlético. Vestuário impecavelmente alinhado, camisa social bem passada com as mangas dobradas até a altura dos cotovelos e calça igualmente bem alinhada. 
Era claro que trabalhava em alguma empresa privada e tinha posição de destaque ali.Levava pela mão uma lindissima garota, por volta de vinte anos, cabelos castanhos claros, na altura dos ombros. Olhos amendoados. Trajava um belo vestido branco preso por um fino cinto dourado.
A garota realmente chamava a atenção de todos, foi fácil constatar pelos olhares que lhe eram dirigidos. Sentaram-se numa mesa muito próxima a minha. Fizeram o pedido e puseram-se a conversar. Eu também, após a movimentação da chegada do casal voltei aos meus afazeres. Como todo bom cidadão que sofre de toque e não se assenta de costas para a porta do ressinto pois sente a necessidade compulsiva de monitorar a movimentação do ambiente (está aí minha confissão de toc desenvolvido pela audiência excessiva de filmes de ação e noticiários policiais). 
O que me chamou a atenção, no entanto, foi a conversa que o casal travou a seguir. (E de antemão adianto, minha mãe me deu educação, mas eu não aprendi. Mas, mesmo que tivesse minimamente aprendido não era possível ignorar o casal sem um fone de ouvidos, e eu não tinha um a mão, poís falavam em um tom um pouco alto).

A principio ele continuava uma conversa que já vinham tendo antes de entrarem no ressinto. 

- Mas essa sua prima viu... Ela é muito bonita. Parece com minha ex-namorada. Gosto de mulheres assim. Louras de olhos claros. O cabelo dela é perfeito. Sabe que todas as minhas namoradas antes de você eram loiras? Você é muito bonita, meu amor, não fica grilada. Só estou comentando que a sua prima, que parece com você tem o cabelo mais lindo. Deve ser genético. Seu cabelo é lindo também, se fosse mais claro seria perfeito.

Ele, tocava a mão dela sobre a mesa fazendo carícias e sorrindo levemente. Enquanto falava também reparava no ambiente ao redor, nas pessoas que estavam no café.Eu observava tudo pelo reflexo no espelho por detrás do rapaz. Sob a proteção inexorável dos meus fiéis óculos escuros (não me culpem, uso óculos de sol em ambiente fechado porque tenho fotosensibilidade... Que diminuam a luz, ora...)

- Sim, a Maria é muito bonita.

Sussurou ela claramente querendo por fim ao assunto. Corpo retraído, os olhos buscavam-no e ao repararem na sondagem que o acompanhante fazia no local, voltavam para sobre a mesa

- Todos meus amigos dizem que eu tenho sorte de namorar com você. Que tirei na loteria porque você é muito linda. Dizem como eu tenho sorte de namorar com você de ser bonita assim e ainda estudar direito. Bonita e inteligente. Fiquei feliz por ter se dado bem com a minha família, fiquei algum tempo pensando em te apresentar. Porque eles já eram acostumados com a Joana, minha ex. Mas, na hora que chegamos na festa de noivado do Claudio. Você viu, todos pararam para reparar. Somos um casal perfeito.

Ela sorriu com a memória. Parecia envaidecida. A memória do momento de distinção a animou. Ela endireitou a postura na cadeira, olhou para ele com um sorriso e ele voltou a fixar o olhar nela.

- Você acha que eles gostaram de mim?

Perguntou animada em busca do sim de aceitação.

- Claro, quem não gostaria de você. E ainda está comigo... Você me faz feliz...

Respondeu romanticamente o jovem rapaz, dessa vez fitando-a romanticamente nos olhos.

- Você também me faz feliz. Gosto muito de estar com você. Esses ultimos dois meses tem sido maravilhosos.

Retrucou de forma também melosa a menina. Ele olhou ao redor e apontou com o olhar.

- Acho que o seu cabelo ia ficar bonito daquela cor.

Ela olhou e viu a moça loura que saia pela porta.

- Mas, você viu que eu mudei? Hoje de manhã fui na cabeleleira, fiz a unha...

Ela enrigecia a mão na intenção de que o acompanhante olhasse para a cor do esmalte em suas unhas (era azul claro, muito bonito) e com a mão livre arrumava o cabelo.

- Hmmhmmm...

Ficou muito bom. Assentiu ele com um sorriso nos lábios.

- Só falei porque semana que vem vai ser o aniversário da Antonia e gostaria que você fosse comigo. Dá no sábado de noite. Dá para você ir?

Falou ele com vozinha um pouco melosa e fazendo uma estranha careta que - entre os dois - comunicava afeição (mas, que toda audiência, como eu, convordava que deveria ter guardado para um momento mais privado).

- Vou sim. vou marcar o salão para sábado de manhã. Para me arrumar para você. Ficar mais bonita...


Vou parar por aqui. A narrativa trata de um encontro casual. Um diálogo entre dois jovens recém enamorados, que comentam gostos e fazem planos. No entanto, em dada altura do desenrolar me veio uma idéia, entre a auscuta do diálogos e as teorias que lia nas provas.
"E se fosse ela quem dissesse que o primo dele tinha ombros largos como o do ex-namorado? E se ela habilidosamente sugerisse que ele fosse para a academia ganhar algumas medidas no torax e nos ombros para agradá-la, ou algo mais simples, que deixasse o cabelo crescer, pois, hipoteticamente, seus parceiros anteriores eram cabeludos e isto estaria mais ao seu gosto".
Pensei:
"e se ela fosse a pessoa a apresentar o parceiro como o troféu a família e amigos?"


Será que ele aceitaria as comparações e o constrangimento de receber orientações sobre como ficar com a aparência mais satisfatória com a mesma atitude servil que ela aceitou?
Pensei, e nesse ponto parei um pouco de corrigir as provas para não me atrapalhar, no quanto esta menina deve ter passado por uma vida de constrangimentos em busca por aceitação (já que ela parecia treinada na arte de ser servil).

Nossa sociedade é caracterizada por uma cultura de racionalização da vida em busca de produtividade, de competitividade, de escassez de afeto em busca de eficiência. Tais características se estruturaram em função da manutenção da eficácia de um modo produtivo que acompanhasse a velocidade do desenvolvimento tecnológico. Por conta dessas características nossas relações e interações cotidianos se tornaram pragmáticas, funcionais e pouco afetivas e inclusivas. Nos tornamos seres em busca de afeto. Além disso, somos herdeiros de uma tradição patriarcal. Esta salienta a primazia do masculino sobre o feminino, enaltece um modelo predatório para os homens e servil para as mulheres. 

Nesse ambiente sócio-cultural a estética e a sexualização dos relacionamentos surgiu como uma forma paleativa de suprir a necessidade básica de aceitação, de afetividade e de acolhimento.
Nesse sentido, os dois personagens da minha observação são vitimas e reprodutores de uma cultura que objetifica o sujeito em interação em busca de uma satisfação hedonica. Ele, preocupado com a aparência dele (e sobretudo dela). E ela também preocupada com a aparência (ambos apresentavam a preocupação com a estética vestindo-se tão bem num lugar tão comum e demonstrando receber tão bem os olhares de admiração, cultura narcisica que vivemos), mas também através de uma atitude aquiescente dos comentários que claramente a constrangiam.

Perguntei-me se esses dois não sofriam de algo que ouvi de um antigo orientador sob o nome da síndrome do medo de perder. Complexo sóciopsicológico gerado na cultura capitalista em que o sujeito assimila o ethos do capitalismo, a saber, somente serei feliz se acumular experiências hedônicas, por meio das minhas interações e sucessos no campo profissional, afetivo, escolar e etc. Não posso perder meu parceiro, nem o prestígio social que granjeio com ele. Minha parceira precisa ser suficientemente bonita para superar a beleza das parceiras anteriores e lograr para mim toda a atenção (leia-se no lugar de atenção afeto) que me foi historicamente negado e que eu acho que tenho direito de ter.

Não quero dirimir aqui, com os comentários feitos imediatamente o conteúdo extremamente machista apresentado na atitude do rapaz (e isto porque eu ainda não quero entrar na discussão de raça que perpassa aquela narrativa). Como eu perguntei acima, teria ele aceitado com a mesma atitude se fosse ela a executora dos comentários.
Se fosse ela a olhar lascívamente cada homem que entrava ou saia daquele café no meio tempo em que estiveram lá?Suspeito que a resposta a esta questão é um sonoro NÃO. Penso isto porque ao comentar o fato com um professor amigo meu, a mente deste se fixou não na atitude de objetificação da garota, mas na questão se ela era ou não gostosa (com pedidos para que eu a descrevesse em termos comparativos com outras garotas de nosso ambiente profissional).

Vivemos numa cultura machista, aquela mesma cultura que sexualiza os comportamentos e que instaura as relações como meios para satisfação dos desejos libdinosos tornando sujeitos em objetos e com isso intensificando o processo de esterelização afetiva dos relacionamentos. Um machismo que concede ao macho a prerrogativa de desejar a prima da namorada, sugerir que a namorada mude a aparência para satisfazer a sua fantasia e perscrutar o ambiente em busca de corpos que lhe satisfaçam a necessidade de "comer com os olhos" aquelas que não estão ao alcance das mãos, mesmo que a propria namorada esteja na presença do indivíduo emitindo sinais claros de que sua autoimagem, sua autoestima e sua capacidade de se reconhecer como portadora de qualidades, por causa do comportamento deste indivíduo, está em risco. Nós homens temos uma conscenção cultural para agirmos assim. É o comportamento do macho. 

Nessa manhã pensei sobre isso antes de terminar de corrigir as provas que versavam sobre processo de alienação do segundo ano do ensino médio e senti a necessidade de por em algumas linhas esta reflexão que na verdade é uma manifestação de gratidão a algumas mulheres fortes que tem lutado para mudar este contexto, como minhas mestras para sempre, Michele Franco, Ivanilde, Maria Luiza, Najla Fratari, Simone, Marcilaine e amigas queridas Marina, Lauanda.
 Pessoas que tem me mostrado com diálogos e colocações sempre muito espirituosas o novo sentido de ser macho. Aquele que valoriza a mulher porque ela é um ser humano e não porque com o cabelo louro irá se parecer mais com... seja quem for...
Mulheres são importantes pelo seu conteúdo, por suas lutas, por suas escolhas, ideologias e sentimentos e não pelas formas de seus quadris e cochas. Mulheres são seres humanos e tem valor intrínseco em si. Espero que minhas alunas que leêm esse blog possam perceber isso, pelas muitas letras e linhas que escrevo e pelos gestos que tento empreender no cotidiano.




Estudos Anticoloniais, Pós-Coloniais, Decoloniais, Subalternos e Epistemologias do Sul

Recebi esta lista no whatsapp, enviada por uma amiga. Reposto o texto na integra para quem interessar começar a se aprofundar no tema. ...