quinta-feira, 16 de julho de 2015

DIVERTIDA MENTE - INSIDE OUT




Quem está no comando da sua cabeça?
A pergunta aparentemente absurda é a premissa do filme Inside Out, Divertida Mente. E é justamente a mesma questão que nos fizemos ao sairmos do cinema ontem onde junto com meu casal de amigos, Fernando e Kamilla, vimos Insid Out, ou na tradução brasileira: DIVERTIDA MENTE.

 Antes de começar Vale então avisar: O TEXTO QUE SEGUE CONTEM SPOILERS.

Inside out conta história de uma parte da vida de Hayle. Uma garotinha de 11 anos de idade do Minesota. Hayle se vê em uma grande transformação quando sua família se muda para São Francisco para acompanhar o novo emprego do pai. A tarefa de adaptação ao novo contexto de vida não é fácil. Mas, como uma boa filha Hayle quer apoiar os seus pais. E camufla seus reais sentimentos sobre o novo contexto de vida. Este é o contexto para Inside Out. O filme, no entanto, focaliza toda a sua ação no "interior" de Hayle.
Especificamente nas emoções da menina enquanto passa por esta fase penosa. Para isso, o filme parte do nascimento da menina e apresenta a gênese de suas emoções básicas: a Alegria, a Tristeza, o Medo, a/o Raiva e a/o Nojo.
O filme é muito didático ao apresentar a gênese das emoções e seu papel no desenvolvimento da personalidade. Segundo o filme as emoções nascem das experiências de vida concretas pelo qual o indivíduo passa. Dessas experiências também surgem as memórias. A carga emocional de uma determinada memória pode defini-la como temporária ou permanente. É muito legal a brincadeira do filme em que as memórias de um dia ficam armazenadas na central junto com as emoções sendo arquivadas somente de noite. Quer dizer, memórias e emoções de um dia ficam guardadas no sistema limbico sendo enviadas para o cortex somente quando dormimos.
Memórias permanentes com maior carga emocional são o que o filme chama de memórias base, isto é, memórias que dão origem às ilhas ou cidades de sentimento. Hayle possuia cinco ilhas/cidades. A cidade da bobeira, cidade do hokey, cidade da amizade e a cidade da família. Veja, estas cidades na verdade são os referênciais valorativos que auxiliam o indivíduo a tomar decisões. Elas nascem de experiências importantes, experiências cujas memórias possuem fortes conotações emocionais.
O desenvolvimento das cidades de emoções, no entanto, não depende somente da carga emocional de uma determinada experiência, ela depende também da interiorização de conceitos e valores culturais bem como do reconhecimento da existência de outros exteriores e diferentes do "Eu". As cidades da amizade e da honestidade de Hayle apresentam esta afirmação. A cidade ou ilha da família é a primeira e mais importante a se formar porque para a criança a família é o centro dos acontecimentos do universo. É a partir das experiências familiares que serão formadas as demais cidades. A ilha cidade da bobeira se forma das brincadeiras com o pai, a ilha da honestidade da admissão/reconhecimento da infração ocorrida em casa, a cidade do hokey é formada em consonância com o gosto dos pais pelo esporte. Mesmo a cidade da amizade que admite o mundo social e uma progressiva mudança e distanciamento da família ocorre próximo ao lar, no quintal, na porta de casa, nosnjogos de hokey onde a familia também está presente. Estes referenciais são importantes para a formação da personalidade e para o desenvolvimento da confiança da criança.
O filme então gira em torno deste eixo.
Giddens afirma que a confiança é o senso de estabilidade de que precisamos para dar continuidade a vida. É o véu que encobre a realidade de que não estamos no controle de todos os processos sociais. Quando confiamos conseguimos nos sentir seguros e tomarmos decisões e atuarmos socialmente sem um alto nivel de ansiedade existencial. Winnicott afirma que este senso de segurança que nomeamos de confiança é desenvolvido na infância, na relação que desenvolvemos com nossos pais. Pais presentes e participativos tenderiam a contribuir no desenvolvimento de Indivíduos com menor ansiedade existencial e que tendem a enxergar os erros de uma forma mais positiva.
Talvez seja por isso que Hayle começa a ver desmoronar suas ilhas de sentimento uma a uma. A mudança de cidade não retirou da menina apenas os elementos rotineiros que tornavam sua vida previsível, leia-se que lhe ajudavam a se sentir segura. Mas também trouxe a ausentificação do pai, instabilidade familiar e ausencia de amigos. Os elementos referenciais que a tinham acompanhado até então ficaram mais pálidos nessa nova rotina.
O desenho apresenta esta nova experiência na forma de uma inadequação, a menina não se sente nem alegre nem triste (a alegria e a tristeza saem da sala de controle e vão parar nas memórias de longo prazo (no cortex, aliás as prateleitars onde estas memórias são guardadas emulam perfeitamente a forma do cortex cerebral). Sem saber como se sente Hayle, e todos nós, é facilmente tomada pela raiva, medo ou nojo.
Emoções que já ganhavam força e destaque desde que partiram de Minesota. A raiva e o medo são os comportamentos mais comuns em uma situação de ansiedade existencial e tomam conta com frequência do painel de controle de Hayle na ausência da alegria e da tristeza.
Ao ver ruir cada um dos seus referenciais valorativos, as cidades de sentimentos, a/o raiva cede a resposta mais fácil e bem acabada. A crença/pensamento de que a felicidade está no passado e que para voltar a ser feliz deve voltar a Minesota onde fora feliz um dia. (lógico que estou saltando muita coisa, mas não dá para falar de tudo de uma vez). O pensamento formado pela raiva e destituído dos referênciais valorativos guardados pelas ilhas de sentimentos torna-se facilmente uma ideia obssessiva, que ninguém consegue tirar da mesa/cabeça.
Tendo a pensar que isto se tornou possível também porque até aquele momento Hayle, como toda criança, tinha sido governada somente pela alegria. Para ela não houve um treinamento de como se comportar de forma adequada quando a raiva, o medo, a tristeza ou o nojo estão no comando. A Alegria de Hayle, quem sabe em todos nós era uma soberana egoísta.
A falta desse treinamento em ser comandada por outras emoções causou a instabilidade que levou Hayle a produzir uma outra realidade emocional, esta sim grave e ameaçadora, o sentimento ou sensação de indiferença que surge em Hayle após perder todos os seus referenciais valorativos, cidades de emoções. A resolução desse conflito então se dá através da integração de todos sentimentos. A alegria aprende o valor da tristeza, e das demais emoções, e passa a permitir que todos passem a gerir o comprtamento.
O painel de controle se torna maior e mais complexo. Esferas de emoções se tornam hibridas deixande de ter apenas uma cor só. E mesmo as cores nas esferas de memórias passam a ser mais palidas indicando uma forma balanceada nas emoções dos indivíduos.
Enfim, acho que deu para perceber o quanto fiquei entusiasmado com o filme.
Daria para dizer muito mais sobre ele, e futuramente o farei, mas por hora queria salientar estes aspectos, que estão um tanto obvios no filme. Acho que é um filme que pretende destacar a importancia de desenvolvermos referenciais valorativos que nos auxiliem a superar adversidades e crises do cotidiano, bem como chama a atenção para a necessidade de integrar as emoções no gerenciamento do comportamento sem que haja um maniqueísmo nisto. Observo que hoje em dia, ou será que sempre foi assim?, temos uma tendência, por exemplo, de considerar a raiva e a tristeza de uma forma negativa e tentar excluí-las ou suprimí-las de nosso comportamento.
A afirmação do filme é: todas as emoções contribuem positivamente para a formação da personalidade, precisamos então, aprender a integra-las de uma forma saudavel. Isto proporcionará um desenvolvimento emocional e de referênciais de orientação do comportamento, as cidades crescem e surgem outras novas, que nos ajudarão a superar momentos de crise.

Uma ultima observação: na modernidade muda tudo! Kkkkk

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Dessubjetivação das interações: suas consequências psicológicas e políticas. Uma analise do filme Wall-e









SINOPSE DO FILME

Após entulhar a Terra de lixo e poluir a atmosfera com gases tóxicos, a humanidade deixou o planeta e passou a viver em uma gigantesca nave. O plano era que o retiro durasse alguns poucos anos, com robôs sendo deixados para limpar o planeta. Wall-E é o último destes robôs, que se mantém em funcionamento graças ao auto-conserto de suas peças. Sua vida consiste em compactar o lixo existente no planeta, que forma torres maiores que arranha-céus, e colecionar objetos curiosos que encontra ao realizar seu trabalho. Até que um dia surge repentinamente uma nave, que traz um novo e moderno robô: Eva. A princípio curioso, Wall-E logo se apaixona pela recém-chegada.


Tese do Filme:

Quero defender que a tese do filme Wall-E seja a de que o aumento na complexidade social seja a causa objetiva do grau de incerteza e que isto, por sua vez, produza a desubjetivação∕despersonalização nos relacionamentos como forma de redução da ansiedade existencial.

Subtese do filme:

A aprendizagem de alguns aspectos da tradição pode descomplexificar a sociedade, diminuindo o grau de incerteza e “resubjetivando”∕”repersonalizando” as relações entre os indivíduos.

Sinopse do Filme:



Dessubjetivação das interações: causas sociais.


                Em Wall-E vemos uma sociedade erigida a partir da prática do consumo como critério legítimo de tomada de decisões, critério esse que atinge nível político ao ponto de que conglomerados comerciais privados passam a assumir e a determinar as escolhas da sociedade. Isto em nível político∕coletivo, mas também na esfera pessoal.
                Despersonalização significa a incapacidade de “enxergar” as necessidades legítimas do Outro e agir para supri-las. Os seres humanos no espaço padecem deste processo. Exemplo, quando Johnn cai de sua cadeira, no meio do transito, nenhum outro ser humano se importa com o fato. Wall-E, no entanto, se prontifica imediatamente a auxilia-lo, mesmo sob o risco de perder de vista sua amada, que motivava a sua demanda.
                Estes seres humanos perderam a capacidade de discernir sobre bem e mal, eles carecem de que robôs lhes deem essa noção e se prendem aos protocolos estabelecidos pelo sistema.
                A crítica do filme nesse sentido converge para a teoria política da filosofa alemã Hannah Arendt sobre a colonização da esfera publica por interesse privados. Critica posteriormente assimilada e desenvolvida pelo filosofo social Jurgen Habermas.
                Arendt e Habermas consideram a esfera pública aos moldes da hagora (ἀγορα) grega, isto é, a praça pública onde as discussões sobre as necessidades da cidade surgiam e eram discutidas pelos cidadãos (cf. Arendt, 2009, p. 60). Na esfera pública são tematizados os interesses coletivos legítimos que devem ser transformados em políticas publicas para o bem da coletividade (cf. Habermas, 2002, p. 138).
                Segundo esses autores, na sociedade do consumo a possibilidade de uma esfera pública ativa e representativa é nula, posto que numa sociedade como essa a colonização dos temas de discussão pública é feita em função de interesses privados∕indivíduais∕egoístas e motivados pela esfera econômica.
                Esta realidade é apresentada em vários momentos do filme, mas pode se destacar as cenas iniciais do filme, quando Wall-E passeia entre os detritos deixados para trás, na terra. Nesse momento vemos que o tornou a terra o repositório de lixo abandonada pelos humanos foi exatamente o que a critica de Arendt e Habermas fizeram. Isto é, a exaltação da cultura do consumo e a delegação das decisões políticas aos conglomerados financeiros – a Buy n Large no filme representa estes conglomerados. A exaltação da cultura do consumo é um indicativo do processo onde a síndrome da gratificação imediata passa a se tornar uma estrutura de pensamento que determina a forma de agir e de pensar dos indivíduos.
                Essa síndrome é causada, de forma objetiva, pelo medo de fazer escolhas erradas. O medo, por sua vez, segundo Pires (2012), é causado pela pluralidade de opções aliada à falta de critérios que dão sentido para as escolhas – processo de secularização e de desencantamento do mundo (Weber, 2004) – tornando o indivíduo o único responsável pelas escolhas que faz (Bauman, 2008).
                Erich Fromm identifica esta síndrome ao fortalecimento do egoísmo como parâmetro legítimo para as interações modernas. Para o autor este egoísmo é uma forma de proteção psicológica utilizada pelo indivíduo para se proteger da incerteza das escolhas certas a serem feitas no cotidiano moderno que foi destituído de referenciais de certo e errado (cf. Fromm, 1983, p,90-113)
                Além disso, o filme propõe uma inversão: nele os seres humanos são os robôs.
                Os robôs antropomorfoseiam características tipicamente humanas nas suas interações. Características como: medo, raiva, paixão, aprendizagem aparecem constantemente nas relações que os robôs estabelecem entre eles e com o mundo que os cercam.
                Exemplo disso, são os robôs Mo, robô de limpeza, compulsivo por limpar que persegue Wall-E pela nave, ele apresenta emoções como raiva, frustração e depois um nível baixo de afeto, mostrado no final do filme quando enfim consegue limpar Wall-E se torna amigo deste. O robô que fica preso do lado de fora da nave, quando EVA e Wall-E regressam de sua “dança” no espaço, mostra desespero por ter sido trancafiado de fora da nave. Os robôs com defeito que passam a seguir Wall-E, todos eles desenvolveram outros sentidos para viver as funções (diretrizes) que lhes eram atribuídas.
                Um segundo aspecto dessa antropomorfesização é a metáfora implícita do filme. O ser humano como um robô. Significa a assimilação da cultura do trabalho como característica identitaria basilar do homem moderno.
                O robô se identifica por sua diretriz. Ele é aquilo que ele faz. A cultura do trabalho, contemporaneamente, também nos caracteriza. Este é um aspecto tipicamente moderno, herdado por nós, neomodernos. Nos tornamos nossas profissões, seres sem passado ou sem história que ultrapasse o que é realizado na atividade profissional.
                O trabalho tematiza nossas conversas, nossa vida se organiza em função de um bom desempenho no trabalho, quer dizer, o tempo de descanso está em função da necessidade de se voltar ao trabalho e exibir uma boa produtividade. As conversas com amigos giram em torno do que é feito no trabalho, ou do que terá que ser feito. O trabalho ganha status de atividade fundamental da vida humana, se confundindo com outras áreas da vida pessoal do indivíduo.
                O trabalho se torna importante na modernidade como forma substitutiva de instituições sociais que davam sentido para a vida, como a religião. Isto porque o trabalho estabelece uma rotina e uma função para os trabalhadores – robôs agem segundo uma diretriz, quer dizer, eles tem uma função a desempenhar, função que é repetida monotonamente todos os dias.
                Numa sociedade complexa o nível de incerteza cresce em função do número de possibilidades de escolhas a serem feitas e em função também da diminuição da importância de instituições sociais que dão sentido às ações dos indivíduos, como religião, ética e família. Em tais contextos é possível falar do trabalho como uma compulsão. Que tem finalidade nela mesma. Os robôs do filme, todos eles, apresentam comportamento neurótico compulsivo em realizar suas tarefas.
                Apesar de apresentar este comportamento também, Wall-E se distingue dos demais. Por que?
                Wall-E por algum motivo se desliga da “realidade robótica”. Ele desenvolve uma personalidade distinta. Gosto por colecionar artefatos antigos relacionados à cultura terráquea deixada para trás.
                Isto nada tem a ver com desejo de transgredir, como explicaria a teoria freudiana com seus mitos fálicos de explicação das origens instituais do comportamento e da estrutura cognitiva do ser humano.

Tradição e formação da consciência.


                Quero identificar isso com o desenvolvimento do gosto pela tradição. Wall-E aprende a amar, a ter honra, a ser solidário. Ele não faz isso em atitude de insurreição aos seus criadores, Wall-E mantém o senso de cuidado e de expectativa de regresso dos seus criadores. O filme começa com a música “out there” (lá fora) que é um indicativo da esperança de encontrar alguém perdido num lugar fora e distante.
                Wall-E aprende a ser solidário e a dar valor ao cuidado. Ele aprende a valorizar o Outro. Suas ações são de cuidado, primeiro com a barata, depois com EVA, por fim com os seres humanos – ato sacrificial para garantir a possibilidade de regresso para a terra.
                É este aprendizado, esta assimilação dos valores tradicionais de uma cultura humana há muito perdida que ressignifica a função diretriz de Wall-E, que o torna singular ante os outros robôs. Que o personaliza e que torna possível a subjetivação das suas relações.
                Wall-E também fomenta ideais românticos – que o leva a se apaixonar pela beleza impar de EVA. Mas, deve-se notar que a concepção de relacionamento de Wall-E com EVA também é distinta de uma concepção individualista de amor. O amor erogenizado da versão freudiana não aparece nessa relação. Antes a concepção de amor representada na atitude de Wall-E, é constituída por um tipo de afetividade – ilustrada pela canção: La vie em rose, na belíssima interpretação de Louis Armstrong (a canção original é de Edit Piaf) – e traduzida na prática, pela atenção que o pequeno robô dispensa à viajante das galáxias e ao serviço e cuidados que lhe dispensa também.
                Estas características distintivas de Wall-E são apreendidas pelo robô com a assimilação da tradição cultural. Esta é responsável por diminuir, para o Wall-E o nível da complexidade social e consequentemente da ansiedade garantindo-lhe uma direção estável de quais as decisões ele deveria tomar.
                Decisões individuais que chegam ao nível político. O robô lixeiro que inicia sua viagem ao espaço em busca do seu ideal romântico consegue relativizar esse objetivo em função do bem estar coletivo da humanidade, ao fazer o sacrifício desafiando Auto o sistema de controle da nave espacial. E em seguida se colocando em risco para segurar a plataforma onde a planta deveria ser colocada para iniciar o regresso para a terra.
                Essa restituição da capacidade de discernir sobre o bem e o mal a partir da aprendizagem da tradição também é ilustrada no processo em que o capitão da nave é transformado.
                O capitão é um homem levado pelo sistema, como os outros seres humanos naquela nave o haviam sido há setecentos anos. Quando EVA lhe entrega a planta e a possibilidade de voltar para casa é despertada no capitão a crença sobre a continuidade da rotina é quebrada.
                Quando o capitão entra em contato com um pouco de terra deixada por Wall-E e passa a estudar a tradição da cultura e história humana é despertado nele uma nova forma de consciência. A consciência de quem ele é, do que deve fazer e da sua responsabilidade real como capitão.
                Baseado nessa nova consciência ele percebe, ao olhar para as fotos dos capitães que o precederam, uma tradição de manipulação e decide agir para restituir a liberdade das escolhas aos humanos. Ele faz isso indo contra o comodismo consumista heteroimposto pelo sistema representado pelo robô Auto.

Tradição e aprendizagem: Possibilidades de formação da consciência e de engajamento político.


                A subtese do filme é de que a tradição, ao contrário da critica freudiana, pode estabilizar as ações humanas dando a estes segurança ao apontarem possibilidades de direção para as suas ações. Wall-E e o capitão da nave são os representantes mais bem acabados dessa subtese no filme.
                Tal subtese se pauta, ou se aproxima, da critica marcusiana a cultura contemporânea. Em, O homem unidimensional, o filosofo social Hebert Marcuse teoriza sobre a necessidade do conflito para a estruturação do aparelho cognitivo humano. Marcuse parte da leitura freudiana onde a estrutura cognitiva do ser humano é construída a partir da relação dinâmica e conflitiva entre ID e Superego, que produz o ego. O principio da realidade que limita e cerceia o desejo humano, segundo o autor, seria um “mal necessário” para o desenvolvimento humano.
                A partir dessa estrutura castradora, presente na tradição e na cultura humana é que o indivíduo aprende a lidar com perdas e a se preparar para desafios que lhes são impostos na esfera publica.
                Marcuse critica a estrutura da sociedade moderna que diminui o valor das instituições formadoras de sentido e determinantes das ações. Segundo ele, essa secularização da realidade moderna é responsável pela extinção do principio da realidade e causadora da dessublimação institucionalizada, que segundo o autor é um fator vital na formação da personalidade autoritária presente na sociedade contemporânea (cf. Marcuse, 1973, p. 84). O autor explica que quanto maior a liberdade para o indivíduo tanto maior a contração das necessidades instintivas, isto é, individualiza mais e diminui-se a possibilidade de resistência.
                Para ele, a civilização industrial desenvolvida opera com um grau maior de liberdade sexual. É uma das realizações dessa sociedade, possibilitada pela higienização e pela otimização do trabalho e seu ambiente. A indevassabilidade dos edifícios e consequente publicização da vida privada também contam como variáveis da “nova socialização” que complementa a deserotização do ambiente. O sexo é integrado ao trabalho e às relações publicas, sendo assim tornado mais suscetível à satisfação (controlada).
                Essa mobilização e administração da libido pode ser a responsável por muito da submissão voluntária, da ausência de terror, da harmonia preestabelecida e aspirações socialmente necessários. A conquista tecnológica e política dos fatores transcendetes da existência humana afirma-se aqui na esfera instintiva, diz Marcuse.
                O autor procura indicar que o principio da sociedade capitalista moderna se assenta nessa dessublimação institucionalizada. E nesse sentido, a satisfação gera um estilo de vida que produz a submissão e enfraquece a racionalidade de protesto. O âmbito da satisfação socialmente permissível é ampliado, mas o principio do prazer é reduzido. A ampliação da satisfação socialmente concedida proporciona a perda da consciência em razão das liberdades satisfatórias concedidas por uma sociedade sem liberdade. Uma sociedade que a sua liberdade é a de escolher o que lhe for determinado. Isto favorece uma “consciência feliz” que facilita a aceitação dos malefícios dessa sociedade. A função da dessublimação na sociedade industrial é a produção do conformismo (cf. Marcuse, 1973, p. 85).
                Ora, essa é exatamente a descrição da estrutura social em que os seres humanos do filme Wall-E estão enredados. Não apenas na nave, mas muito antes de partir para o espaço estes humanos já estavam inseridos na estrutura social onde o critério para tomada de decisões era o estilo de vida hedônico, como foi dito no inicio.
                A restituição dos sentidos tradicionais ao capitão é o que possibilita a este a tomada de consciência e a possibilidade de julgar se Auto estava certo ou errado, e então, decidir o que fazer para o bem coletivo, uma ação individual, mas também política.

Envolvimento: a decisão pela experiência como alternativa para a cura.


                Mas ainda há outra tese presente no filme. A de que a mudança social não pode ser apreendida apenas teoricamente ela deve ser experimentada nas ações em direção ao outro.
                EVA só é despertada do seu entorpecimento para o mundo do trabalho quando o capitão instala nela um projetor holográfico que projeta as imagens de sua câmera de segurança. Ali ela entra em contato com o cuidado que Wall-E dispensou a ela, mesmo quando ela não podia ver esse cuidado. É então que EVA percebe a alternativa para sua forma de vida que é proposta na performance prática de Wall-E.
                Essa performance libertadora, de Wall-E, atinge não somente a EVA, mas ao capitão também, que presencia seu sacrifício ao proteger a planta de Auto, ao pequeno Mo que presencia a decisão de Wall-E de EVA deveria cumprir sua diretriz levando os humanos de volta para casa em detrimento de risco da própria “vida” Wall-E.
                A cena final, onde a subjetivação∕personalização das relações e do próprio indivíduo é devolvida a Wall-E pelo “beijo” de EVA também indica a necessidade desse contato experiencial para a “libertação” da despersonalização que Wall-E tinha passado.
                Essa cena dialoga com a cena de outro filme, a saber, Gênio Indomável. Na cena na conversa no parque entre o terapeuta Sean e o problemático paciente Will Hunting o terapeuta alerta. O conhecimento teórico é capaz apenas de produzir mais psicopatologias e espírito de competitividade. Para a humanização de um relacionamento é necessário que haja imersão na experiência, que haja interesse de ambas as partes e abertura. Que haja envolvimento e experiência. Relações superficiais como as criadas no mundo do trabalho e consumo só podem produzir mais experiências superficiais e destituídas de sentido, aprofundando o problema já existente.
                Wall-E é um conto infantil que faz uma critica inteligente a estrutura das relações contemporâneas baseadas na segurança pueril criada pelo mundo do trabalho, pela incerteza da falta de referenciais de éticos (tradição) para tomada de decisões e que fala da consequência subjetiva destas transformações contemporâneas, tanto quanto das consequências macropolíticas que elas ganham.

Referencias:


ARENDT, Hannah. A tradição e a época moderna. In: Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 43-68.
BAUMAN, Zygmunt. Critica – privatizada e desarmada. In: A sociedade individualizada. Vidas contadas e histórias vividas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 129 – 141.
FROMM, Erich. Os dois aspectos da liberdade para o homem moderno. In: O medo à liberdade. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983, p. 90 – 113.
GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
HABERMAS, Jürgen. A entrada na pós-modernidade: Nietzsche como ponto de inflexão. In: O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 121-151.
MARCUSE, Hebert. A ideologia da sociedade industrial. O homem unidimensional. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1973.
PIRES, Anderson. A sociedade do glamour, ética do consumismo e a ontologia da verdade. In: Revista brasileira de psicoteologia. Disponível em: <>. Acessado em: 22-04-2013.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.







Anjos Rebeldes e a Estrutura de Dominação da Sociedade Irreflexíva


Neste fim de semana revi um filme que havia assistido há um tempo atrás. Reescrevi o comentário sobre ele. Espero que gostem. O nome do filme em português é Anjos Rebeldes, Iron Jawed Angels (2004) o original em inglês.

ELENCO






O filme se passa no período a partir de 1912. Esse filme é estrelado pela já conhecida Hilary Swank, que ficou muito conhecida ao contracenar e ser dirigida por Eastwood em Menina de Ouro (2004), mas que tem outros sucessos no curriculo como Meninos não Choram (1999), Dalia Negra (2006) e o recente P. S. Eu te Amo (2007) em que contracena com Gerard Butler.
No drama de duas horas produzido pela HBO Films, dirigido por Katja von Garnie e co-estrelado por Margo Martindale , Anjelica Huston, Frances O'Connor, Lois Smith e Patrick Dempsey (Ben Weissman) Iron Jawed Angels Swank esta primorosa no papel da quaker feminista que junto a amiga Lucy Burns (Frances O'Connor) vai encontrar a líder reverenda Anna Howard Shaw (Lois Smith), que preside a Associação Nacional das Mulheres Sufragistas e tem Carrie Chapman Catt (Anjelica Huston).


SINOPSE


Alice, personagem de Swank, discorda da postura conservadora de Anna e pensa haver modos mais aguerridos de conseguir a aprovação da ementa que permite que todas as mulheres americanas votem e com isso organiza, não sem resistência, uma passeata em Washington D. C. no mesmo dia da posse do presidente Woodrow Wilson (Bob Gunton). 
Alice torna-se chefe das comitê da ANAMS em Washington, mas terá que arrumar fundos sozinha para fazer a passeata. Junto à Lucy, Alice organiza o comitê e conseguem apoio de algumas trabalhadoras de uma fábrica onde conseguem o apoio de Mabel Vernon (Brooke Smith) também se junta a elas e Ida Wells-Barnett (Adilah Barnes), uma negra de Chicago, aparece para dizer que marchará na passeata, mas não aceitará a idéia de que as negras fiquem na parada em separado, atrás.

É muito interessante a discussão que se segue, porque debate sobre a comodidade em que o movimento feminista inicialmente adotou relegando as negras à uma postura de sujeição política que refletia a sujeição imposta às mulheres pelos homens. A personagem de Swank é colocada em uma situação de refletir sobre a reprodução da dominação que até aquele momento estava invisibilizada sob o discurso libertacionista que produziam, mas que omitia a evidente situação de comodidade para elas. Porém, vou falar sobre isso mais adiante. 

Alice e companheiras, então comparecem a um encontro social com a finalidade de levantar fundos para a passeata e para o comitê, ali ela, Alice, conhece Ben Weissman (Patrick Dempsey), que trabalha como desenhista no Washington Post, e Inez Millholland (Julia Ormond), uma advogada trabalhista que tem ideias que se afinam bem com as de Alice. Inez é convidada a participar da passeata personificando uma guerreira. No dia da passeata muitas pessoas foram aplaudir ou protestar, enquanto Wilson era praticamente ignorado ao chegar na capital. Entretanto na parada o clima era cada vez mais tenso, pois os que protestavam se mostravam agressivos. A polícia "se distrai" e deixa os insatisfeitos invadirem a pista, para agredir quem estava na passeata. Isto resulta em 100 feridos e enquanto o conservadorismo de Carrie critica o que aconteceu, Alice e suas amigas encaram como uma vitória, pois a publicidade foi imensa e os jornais disseram que a culpa do tumulto foi negligência policial, com o Post exigindo uma investigação. Assim, antes que as feridas se curem, uma delegação foi se encontrar com Wilson, que foi evasivo sobre o voto para as mulheres, pois sabe que Anna Shaw não o pressionará. Elas então adotam um estratégia mais dinâmica, mas o que as espera seriam incapazes de imaginar.
Montam piquete na porta do presidente Wilson o que é interpretado como um esforço antipatriótico, posto que os Estados Unidos acabaram de declarar seu envolvimento com a guerra e as feministas são uma a uma presas, até que finalmente e sob protesto das companheiras a própria Alice é presa. 
Na cadeia sob tortura, Alice decide-se por uma postura radical de protesto para chamar a atenção da imprensa, que acompanhava através de Ben e das autoridades através do senador Thomas Leighton (Joseph Adams), que tinha sua mulher Emily (Molly Parker) presa como uma das feministas, o martírio da líder feminista e das suas companheiras.
O esforço leva Alice à beira da morte. Mas com isso ela consegue promover a comoção que gera a pressão para a aprovação do voto feminino universal.


COMENTÁRIOS


Anjos Rebeldes é um filme forte. Tem ritmo, uma fotografia excelente, interpretações sóbrias e uma trilha sonora equilibrada e que dá bem o clima.
Mas o que mais chamou minha atenção foi que o filme consegue transmitir com sutileza que por traz de uma situação de dominação existe sempre uma cultura da não reflexividade. No caso de Iron Jawed Angels, tal cultura é promovida pela cultura patriarcal, a postura do senador Thomas Leighton, por exemplo, grita o esteriótipo dessa cultura quando ele condena a esposa e que brada que lugar de mulher é em casa cuidando das crianças ou quando se nega a visitar a esposa na cadeia... 


REFLEXÃO


A modernidade bradou contra os paradigmas tradicionais em seu empreendimento libertacionista e promoveu o "esclarecimento" dos homens e das mulheres destas amarras que os prendiam e impediam uma existência de igualdade, que fosse baseada nos méritos do indivíduo em sim. Ao fazê-lo iniciou-se um processo de individualização que permitiu o surgimento de movimentos como o feminista ilustrado no filme acima comentado, mas a ausência de direção assumida a partir de então nos levou para outro extremo, um pólo antagônico aos ideais de valorização do ser humano idealizados pelo movimento do iluminismo.
A este respeito também podemos ressaltar o filme Idiocracia que ressalta que em nossos dias predomina uma "filosofia bigbrotheriana do vamos curtir" donde a sociedade produtora e reprodutora desse ethos social considera a sabedoria uma idiotice e venera uma cultura do prazer e esta viciada no prazer. Um artigo escrito por Madaleno ressalta:



"A alemã Hannah Arendt, há algumas décadas, preocupou-se com esse lugar entre o passado e futuro ao qual chamamos presente. Para ela, o desinteresse pelo passado (e por valores tradicionais que sustentaram as relações humanas durante séculos) tornou o futuro incerto, criando um senso de desorientação no presente. Para o pensador polonês Zygmunt Bauman, na modernidade líquida em que vivemos (onde os ideais e valores que predominaram na modernidade sólida da fé na ciência escoam pelo ralo) não há certezas quanto ao futuro e o medo predomina na subjetividade das pessoas. Neste mundo, desenvolvemos uma persistente intolerância a tudo que nos entedie. Com o controle da TV ou o mouse à mão, nos “divorciamos” rapidamente de tudo que não desperte o nosso interesse imediato. E  o que desperta interesse? O critério-chave adotado pelo homem contemporâneo tem sido: interessa apenas aquilo (e aquele) que possa produzir resultados e que viabilize a autossatisfação. Trata-se de uma sociedade infantilizada, incapaz de suportar a espera e de atender à exigência de esforço que é parte de todo processo de amadurecimento. "


Assim o psicologo completa falando sobre o compromisso da mídia contemporânea em alimentar de entretenimento irreflexívo um público cada vez maior de falantes produtores de uma demanda hedônica como forma-de-existir-no-mundo. Assim ele reflete:



"A ordem do momento é falar o que se pensa e se sente. Todavia, aquilo que tanto se quer dizer termina por mostrar, frequentemente, a superficialidade do pensamento idiotizado, ou seja, centrado no próprio indivíduo. Ouvir tornou-se uma tarefa desinteressante, ignorada e, por vezes, ridicularizada. Logo, o discernimento que leva a saúde (em seu sentido mais amplo, ou seja, biopsicossocial), tornou-se raríssimo".

E conclui



"Na sociedade idiotizada dos falantes sem disposição para ouvir e ansiosos por falar, a distância cognitiva e de autoridade entre crianças e adultos tem se tornado cada vez menor".


Os desdobramentos sociais do movimento de insurreição à toda Tradição pretendido pela modernidade ocidental, conforme é analisado por Arendt nos trouxe ao extremo oposto e hoje convivemos com a demência da infantilidade de adultos que falam o que vem a cabeça e a todo momento negam na prática aquilo que professam em discurso e fazem isso em nome de uma moral da comodidade e de uma ética do prazer.

O filme desencadeou esta reflexão porque assisti ele em concomitancia à dois eventos lamentáveis ocorridos na faculdade onde homens supostamente esclarecidos manifestaram a estupidez da agressão contra mulheres em nome de detalhes estéticos e da pura afirmação da autoridade masculina.
Tão absurda quanto essa reação irreflexíva que, a priori, ecoa um tradicionalismo retrogrado é a atitude de conformismo daqueles que a presenciaram sem manifestar indignação alguma clara e declaradamente reproduzindo uma postura de acomodação em nome da busca por aceitação e pelo prazer. Se se envolver significa militar políticamente e com isso negar ou pelo menos adiar a possibilidade de satisfazer as pulsões que motivam, de forma subconsciente nossas ações - o eros é o critério de tomada de decisões na modernidade líquida - então preferimos nos furtar a esse exercício.
Voltando ao filme, Alice Paul lutou contra a irreflexívidade asfixiante do machismo de seus tempos, mas hoje não temos heróis ou heroínas que lutem contra a irreflixívidade infantilizadora de nossos dias, pois na sociedade idiotizada, é mais fácil dar de ombros e considerar hilária e inapropriada a ação de tentar viver diligentemente lendo nas entrelinhas as mensagens de uma forma de viver despreocupada e descompromissada da sociedade hedônica que oprime a todos, hoje as mulheres, amanhã, quem sabe, você (?). E assim, denunciamos com nossa prática irreflexíva a corrosão do sistema de valores, bem como corroboramos a tese de Arendt de que vivemos enclausurados em um presente sem passado, onde um filme que nos lembra as grandes lutas pela libertação da dominação masculina não passa de um entretenimento para divertir, assim como o dia das mulheres não passa de uma data comercial, e que o futuro não possui sentido ou valor pois não é uma possíbilidade a ser pensada, mas de onde emana a desconfiança (o medo como acentua Bauman) de que nada seremos. Para viver num mundo assim, somente sendo idiotas que vivem aprisionados pelas pulsões externas e internas que os pressionam e que os impelem, ou como loucos hilários que sobre tudo refletem e protestam, mas que por ninguém podem ser atendidos...
Este é o triste fim que levou as lutas das mulheres por seu lugar na sociedade, o direito de votar está aí. Mais firme do que nunca, mas perdeu seu sentido posto que não há ideologias, ou melhor, não há lutas a serem travadas no campo público a não ser a luta pelo próprio bem-estar de cada um onde cada um esta cada vez mais sozinho.

Depois do filme conversei com minha namorada, não foi "d. r." mas uma edificante reflexão sobre o que devemos fazer para que o sentido de nossa tradição não se perca na ausência de sentido da fluidez desse mundo. Esse texto é um começo.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

EXÔDO: ENTRE O PASTOR E O GENERAL



 A relação entre homem e Deus tende a apresentá-las como um desequilíbrio mental daquele que crê. Como uma fraqueza, um desvio da razão. O filme não afirma diretamente a inexistência de Deus, a modernidade tardia não exige isso como exigia a modernidade em sua busca da autonomia da razão.





Essa Semana fui assistir ao filme do Ridley Scott, Êxodo – Deuses e Reis. Gostaria de comentar um pouco sobre o que achei, como eu faço sempre.
Antes faz bem lembrar um pouco, de forma rápida alguns aspectos do livro base para o filme.

A primeira coisa que devemos lembrar é que o titulo do filme é homônimo ao do segundo livro do Antigo Testamento. O Livro de Êxodo, cuja autoria é tradicionalmente atribuída a Moisés, é possivelmente o mais importante do Antigo Testamento. Nele podemos observar o desenvolvimento da narrativa de como o povo de Israel estabelece o relacionamento com o Deus Único (Adonais, Javé o Eu Sou). Nessa narrativa o protagonista é Javé, mas o principal profeta, aquele que lidera o povo na fuga do Egito e que estabelece o código moral e jurídico para esse novo povo e por isso ganha tanto destaque quanto Javé é Moises.
Além disso, o livro de Êxodo pode ser considerado como um épico literário, repleto de prodígios sobrenaturais, pragas, calamidades ordenadas pelo Senhor (Adonai), mas também onde as paixões humanas, os medos e ambições ganham destaque. Nesse texto observamos uma escrita bíblica elíptica, poética, repetitiva muitas vezes lacunar. Javé surge na escrita como o Libertador do povo que ama, mas também como um Deus caprichoso, ciumento e muitas vezes, para a sensibilidade moderna, sanguinário e infantil. A sombra que as lacunas da narrativa apresenta deixa espaço para diferentes interpretações. O leitor atento muitas vezes é chamado a participar da leitura, interpretação do texto imbuindo-lhe sentidos que muitas vezes não estariam ali...
Penso que foi nessas brechas que se apoiou a dramatização hollywoodiana de Ridley Scott.

MOISÉS, DE PASTOR A GENERAL


Uma das coisas que mais me chamaram a atenção neste filme foi a transformação do personagem Moisés. Para mim, talvez devido a influência da animação Príncipe do Egito, o Moisés que volta ao Egito, chamado por Deus, é o pastor, alquebrado pelo medo e pelo drama de ter que fugir da corte do faraó, pelos anos de pastoreio no deserto. Um Moisés com uma perspectiva de vida dos pastores de Midiã e assombrado pela epifânia do Sagrado de Javé (Rudolfo Otto) na sarça ardente. Enfim, um homem humilhado e submisso. Um pastor com pouca disposição belicosa e com um profundo respeito pela cultura que tinha deixado para trás.
Moisés interpretado por 
O filme apresenta a visão de um Moisés, interpretado por Christian Bale, criado como príncipe na corte do faraó. A ênfase neste filme, como na animação, é na rivalidade entre Moisés e o príncipe Ramsés, interpretado por Joel Edgerton, herdeiro legítimo ao trono. Vale lembrar que a disputa entre os “irmãos” é algo próprio das produções hollywoodianas, mas não está presente no texto bíblico. Se lembrarmos dos filmes predecessores ao que agora discutimos vamos nos lembrar de: Os Dez Mandamentos (1956), de Cecil B. DeMille, nesse o diretor introduziu uma disputa entre os dois grandes homens do Egito pelo amor de Nefretiri. Na animação da Disney o drama entre os quase irmãos se dá em torno da fome de poder e da responsabilidade das ações de cada um.
O romance é suprimido neste novo filme. Como na animação o romance é introduzido de forma sutil através da relação entre Moisés e Zípora, interpretada por Maria Valverde, mas de forma menos melosa e condizente a cultura burguesa contemporânea, ou seja, descolando as relações do período histórico das relações entre homem e mulher no século 13 a. C.
Anyway. O novo filme apresenta um Moisés “porradeiro”. É o que o jornalista José Geraldo Couto chamou de “infantilização bélica dos filmes de ação”. O jornalista, acertou certeiramente ao dizer que o Moisés apresenta no filme uma transformação de Moisés num “super-herói de força descomunal e extremas habilidades marciais”. Além disso é mantida a tradição do herói bonito e vigoroso seguindo aos padrões estéticos de beleza e virilidade estados unidenses contemporâneo.
Como eu disse no inicio, eu estava acostumado a figura de Moisés como um velho barbudo e com o corpo já indo “ladeira abaixo”, se apoiando no cajado e completamente dependente de seu Deus por causa disso. Mas, essa representação fere a sensibilidade dos públicos de hoje em dia, sedentos pela ação frenética e pela violência sem sentido dos vídeo games e efeitos especiais. Acho que isto vai de encontro com a critica de Bauman quando fala que a cultura contemporânea é ávida por beleza que pode produzir satisfação instantânea. Talvez se adéqüe também a representação de Deus no filme.
Scott renunciou tanto a representação abstrata de Deus em meio a sarça ardente, onde a figura de Deus não aparece em nome da ênfase no seu poder e glória que produzem no homem que se encontra com Deus a sensação de finitude e dependência. Também renunciou a figura do Deus Paterno, velho, com longa barba e que foi figurativo do Ocidente por séculos. Representação que evocava a tradição, que nos nossos dias é automaticamente associada com a castração do desejo individual. Em lugar disso o filme apresentou Deus como uma criança geniosa e cruel. Fica aí a insinuação do que o diretor pensa sobre esse Deus... (risos).

DEUS NA CULTURA CONTEMPORANEA


“Deus está morto”. Foi esse o grito da filosofia moderna para a tradição religiosa Ocidental do século 19. Grito que ecoa até nós, que não deixamos de ser religiosos, pelo contrário. Mas que abandonamos vários aspectos da fé pré-moderna em nome dos ideais de conforto, satisfação, felicidade e prestígio. Manter a figura de Deus nessa cultura foi possível somente com uma acomodação do conteúdo tradicional as novas estratégias econômicas e estilos de vida no Ocidente. Essa reinterpretação da figura de Deus foi feita na filosofia e na psicanálise sobretudo.
Deus foi interpretado como uma projeção do indivíduo carente devido as suas condições históricas. Quer dizer, numa sociedade técnica, onde a desconfiança e a competitividade crescem e a afetividade e os laços de amizade e familiares perdem significância a figura de Deus acaba aparecendo como o personagem capaz de suprir essas necessidades. Outra interpretação é a de que Deus, ou a religião, seja uma narrativa produzida a partir das classes sociais privilegiadas. Uma narrativa que é capaz de estabilizar a estrutura social condicionando os indivíduos a se manterem acomodados nas suas posições sociais. Isto é, a religião produz a justificativa para o pobre se manter na sua condição de empregado trabalhador e honesto não protestando contra os privilégios que o seu chefe possui por causa do almejado prêmio projetado para o futuro depois da história...
É este Deus projetado pelo ser humano que o filme apresenta.
O herói Moisés é apresentado como um general descrente que é confrontado por seu passado ligado a sua ascendência hebraica. Mesmo descrente da fé de seus antepassados, hebreus ou egípcios, Moisés é levado para o deserto onde conhece a tribo de pastores do deserto e enfim se assenta ao se casar com Zípora. A figura de Deus não aparece no filme até então. Deus só entra em jogo após Moisés ser acertado na cabeça por uma pedra quando sobe ao alto do Horebe em busca das ovelhas desgarradas.
Uma mente mais crédula e fervorosa poderia interpretar o filme como que inspirado pela narrativa bíblica onde todos os eventos são embalados pelo cuidado de Deus sobre a história. Eu, porém, penso que o diretor quis inserir aquela perspectiva ateia ou agnóstica de história onde Deus não passa de uma projeção humana. Digo isso não baseado apenas no fato de que a figura de Deus aparece apenas após o acidente de Moisés. Mas, sobretudo, porque Moisés é sempre visto pelo personagem Josué, interpretado por Aaron Paul, conversando com o vento (quando na narrativa bíblica é dito que quando Moisés tinha conferências com Deus via-se no monte fumaça, chamas, luz além de um forte sentimento de terror). Outro fator é a apresentação da narrativa das pragas que também são “naturalizadas” ou “desdivinizadas” e explicadas no filme.
Volto na figura de Moisés que deixa o bordão, símbolo da intervenção de Deus e da dependência do homem, substituindo-o pela espada, símbolo do poder e da autonomia humana – poder pela violência que o homem pode infringir. Moisés, antes das pragas treina os hebreus em táticas militares para minar o poder dos egípcios e só para quando o Deus criança afirma aos berros que irá colocar Faraó aos Seus pés de joelhos, momento em que começam as pragas.

Enfim, minha tese aqui é: “Toda história é história contemporânea” como lembrou Couto citando Croce. E este filme ao tratar das questões da relação entre homem e Deus tende a apresentá-las como um desequilíbrio mental daquele que crê. Como uma fraqueza, um desvio da razão. O filme não afirma diretamente a inexistência de Deus, a modernidade tardia não exige isso como exigia a modernidade em sua busca da autonomia da razão. Por isso, dentro do mesmo filme a travessia do mar vermelho pode ser inicialmente vista como um fenômeno natural explicável, pela mudança da maré, e quase que em seguida como um grande milagre representado pela onda gigante provocada pela repentina tempestade na “cabeceira” do mar.

O épico de Scott de três horas é um pouco cansativo pelo excesso de ação. A costumização dos personagens é muito bem feita, tanto que as vezes foge da naturalidade, principalmente os personagens egípcios. Senti a falta de uma trilha sonora mais marcante apesar de que ela está lá, de uma forma bem suave. Tem boas imagens, mas não é nada digno de prêmios. Gladiador ainda é melhor neste gênero na produção de Scott. Mas, é um filme que vale a pena ver.
Para mim, o filme merece nota 3,0 de 0,0 a 5,0.




Estudos Anticoloniais, Pós-Coloniais, Decoloniais, Subalternos e Epistemologias do Sul

Recebi esta lista no whatsapp, enviada por uma amiga. Reposto o texto na integra para quem interessar começar a se aprofundar no tema. ...