sexta-feira, 1 de junho de 2018

Iktsuarpok



Iktsuarpok. Essa é a palavra em inuit que expressa o sentimento de expectativa de uma pessoa quando espera alguém e vai muitas vezes à porta para ver se a pessoa já chegou.
            Juliana vivia à espera. À espera do amor que nunca chegou, do reconhecimento que tanto desejava. Para ela amor passava por aí, reconhecimento social. Não que ela pensasse assim literalmente. Na verdade era o contrário. Acreditava fortemente de que quando “encontrasse o amor” se sentiria completa e feliz e dispensaria finalmente a necessidade de reconhecimento dos outros.
            Não que Juliana fosse uma inuíte. Pelo contrário, ela era uma inteligente psicomodeladora residente nos campos do Novo Canadá, ao sul do polo norte. Passou a vida estudando.
            Seus pais deram a melhor educação que podiam para ela. Eles tinham a forte convicção de que a filha teria que ter um bom futuro profissional, afinal, não a achavam tão interessante quanto as amiguinhas que ela tinha.
            Juliana era gordinha quando criança e apesar de muito doce e inteligente era tímida e não conseguia muita atenção. O contrário de sua irmã mais nova, Janaina. Janaina era mais nova que Juliana. Era uma menina espevitada e curiosa. Gostava de falar e fazer brincadeiras. Todos se encantavam pela doçura de Juliana, mas era para Janaina que acabavam olhando com atenção e interesse.
            Foi por isso que Juliana se refugiou no seu mundo romântico a espera do seu príncipe encantado. Com o tempo, se dedicou aos estudos. Em sua lógica pensava: se me destacar como uma pessoa inteligente, capaz de dizer coisas interessantes e se conseguir uma boa colocação como profissional, quem sabe assim alguém me ame. Quem sabe alguém me ache especial.
            Ela conseguiu se tornar uma profissional de destaque e até conseguiu alguns amigos que a admiravam e gostavam dela. Mas o tempo na faculdade deu a ela provas de que não são essas as características que o príncipe encantado procura.
            Enquanto Janaina prosseguia recebendo toda a atenção dos pais com o seu jeito contundente, um desenvolvimento controverso do comportamento espevitado que a menina engraçada mostrou no passado, Juliana se via sendo cada vez deixada mais de lado ainda.
As duas irmãs se amavam, o que tornava mais dura pra ambas o ódio que secretamente acabaram nutrindo uma pela outra devido à competição velada que travavam.
            Certa vez durante a faculdade se apaixonou por um colega. Por meses tentou despertar a atenção dele e até mesmo foi ousada puxando conversa após uma aula com o fulano. Mas tudo o que ela conseguiu foi que o colega desse um sorriso e pedisse que ela o ajudasse com os deveres da disciplina. Uma semana depois ela descobriu que ele estava ficando com uma aluna de outra turma. Tudo o que ela tinha planejado com ele desmoronava como um castelo de cartas soprado pelo vento.
            Juliana se sentia feia. Sentia o medo de jamais ser amada por ninguém. As atenções que Janaina recebia da família sem mostrar o respeito ou o desempenho que ela demonstrava incomodavam-na profundamente. Parecia-lhe injusto que alguém que não era bonito, nem que demonstrava uma grande aptidão intelectual fosse tão bem recompensada, enquanto ela, dedicada, esmerada, gentil e bondosa fosse condenada ao ostracismo. Janaina, sentia-se insegura diante do progresso da irmã. Para Janaina, o sucesso de Juliana era a confirmação de seu eterno segundo lugar. Sua agressividade se tornou a arma contra o medo de ser deixada de lado, abandonada que crescia em seu peito cada vez que abria os olhos ao acordar. Na mente de Janaina, as qualidades de boa moça de sua irmã Juliana eram simplesmente insuperáveis.
            As noites, Juliana, sozinha ela remoía estes pensamentos em sua cabeça. De noite, Janaina, embalada pela soma (droga criada em 3025 para produzir relaxamento muscular e entorpecimento mental) tinha pesadelos com o sucesso da irmã e do próprio  fracasso diante de seus pais.
            E assim, sem perceberem os dias passavam, e os sentimentos, e as percepções se cristalizavam em comportamentos de competitividade e autonegação. E cada vez que Juliana encontrava uma pessoa ou um ambiente novo acontecia em seu interior iktsuarpok. O sentimento de expectativa incontrolável lhe dominava. Poderia ser ali que ela encontraria alguém que dessa a ela o afeto que ela sabia ter direito de receber.
            Este sentimento era acompanhado pelas idealizações de reconhecimento social que Juliana apreendeu dos filmes românticos que viu solitariamente no decorrer da sua curta vida. Juliana progressivamente aprendeu a procurar fora dela mesma o reconhecimento interior de que carecia.
            Gradualmente, no entanto, a menina doce e gentil cedeu lugar a uma mulher rancorosa. As subsequentes frustrações fizeram com que Juliana criasse uma crença em seu intimo. A crença de que você precisa ser bonito para ser recompensado.
            Ela passou a acreditar que a gratificação equivalia ao sentimento amoroso e por isso ela trabalhou duramente para modificar o seu corpo. Juliana não queria mais esperar à porta a chegada de um príncipe. Agora ela desejava fazer com que as pessoas ao seu redor se curvassem à sua presença. Ela não iria mais esperar para ser escolhida como digna de ser amada por alguém, o que ela queria agora era dizer a todos quais eram dignos de sua atenção e quem não era.
A garota olhou ao seu redor e viu que isso de fato não era errado. Na verdade, suas amigas, que saiam e se divertiam faziam exatamente isso. Mais que isso, Juliana percebeu, que era o que Janaina fazia.
Janaina do amor livre e da vida dupla. Saia todas as noites dizendo para os pais que ia ao centro de contemplação, mas no final ia mesmo era para os centros recreativos e mesmo sendo feia e sem nenhum atributo intelectual destacável além daquele senso de humor agressivo, conseguia tudo o que queria.
Em seu interior Juliana pensava: Janaina sim é que é feliz. Pensava isso mesmo quando se queixava do comportamento de Janaina para os amigos.
            Foi então, que por meio de muito trabalho duro Juliana conseguiu o que queria. Ela mudou física e psicologicamente. Sua transformação foi tamanha que era impossível que qualquer homem ou mulher que a olhavam não se sentissem encantados pela sua beleza.
            Até mesmo os seus pais passaram a trata-la de modo diferente. Da filha secundária passou a primazia. Era uma brilhante cientistae ainda por cima bonita. Um verdadeiro orgulho para a família. Janaina finalmente fora superada, e não havia nada que pudesse fazer que contestasse o sucesso de Juliana.
A depressão de Janaina ao perceber a progressiva mudança de Juliana alcançou níveis extremos e a garota agressiva passou a se refugiar nos salões de realidade criada. Lugares onde o indivíduo podia projetar uma realidade virtual e embalado por soma ou outra droga passar horas. Um refúgio, uma fuga.
            Juliana passou a sair todas as noites. Conseguiu os namorados e os amigos que sempre desejou. Ficou conhecida pelas amigas como A PREDADORA. Desenvolveu um senso de humor apurado, acido, que atraia e intimidava todos ao seu redor. E ela passou a gostar muito desse tipo de atenção. Finalmente, ela sabia como era ser Janaina.
Mas curiosamente todas as noites quando saia sentia iktuarpok, o sentimento de expectativa da espera da chegada de alguém especial... Sentimento fortemente reforçado pela sensação de que todo aquele prestigio que havia conquistado rapidamente se esvairia.
            Por isso Juliana todas as noites “ia até a porta” e esperava alguém que ainda não tinha chegado.
Juliana, ao se "tornar" Janaina finalmente compreendeu o que a irmã sentia e percebeu que no processo a pessoa que ela tanto queria encontrar tinha se perdido. Percebeu que deveria ter se encontrado primeiro e que por mais que estivesse à espera na porta, não estava em atenção diligente o suficiente para ver que defronte à porta sempre houve um espelho para se mirar...

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