1. Como um Cubículo e uma
Gata Obesa Podem Destruir Sua Sanidade
Ela morava a quatro meses e
dezessete dias (precisão que considerava supérflua, mas que a vida insistia em
gravar em sua testa com letras miúdas) num cubículo que outrora aspirava ser um
apartamento. As paredes, cobertas de tinta esfarelada como crosta de bolo
abandonado, testemunhavam o desgaste de décadas de inquilinos frustrados e
umidade insurgente. Na parede, os diplomas de Hérica Rios - graduada em
direito, Especialista em Teoria dos Sistemas, Mestra em Ciência Política,
doutora em Filosofia Política - pendiam tortos, envergonhados de sua própria
inutilidade, a luz mortiça da lâmpada fluorescente era embaçada pelo ar
carregado de poeira e restos de ração barata, partículas que dançavam no ar sem
movimento.
Munchausen, sua gata, era um
monumento vivo à decadência, ela ocupava o sofá como uma esfinge obesa. Com
dezenove anos não miava mais, tais anos eram mais que a idade cronológica; eram
dezenove séculos de mágoa felina. O diagnóstico veterinário decretou:
cardiopatia, artrite e um ódio existencial pelo aspirador de pós. Ela roncava,
som que ecoava pelo cômodo inteiro e lembrava a Hérica que até os sistemas
autopoiéticos de Luhmann falham - afinal, que diabo de sistema permitiria que
um animal do tamanho de um pneu velho custasse R$ 400,00 em veterinário por
mês? (somente a consulta, exames e remédios chegavam a custar R$ 1200,00)[1].
No pequeno quarto onde,
outrora, fora o escritório em que Hérica acumulou os livros como Direito como
Sistema Social e Feminismos Pós-Estruturais estavam Pedro e Paulo filhos de
Hérica (batizados em crise de ateísmo militante, mas que agora exigiam ir à igreja
"porque o TikTok disse que é tendência"). Os livros agora serviam de
escora para uma mesa desengonçada onde a prole assistia a vídeos sobre
"como ser alpha aos 12 anos". Hérica os observava, às vezes, e
perguntava-se se Luhmann incluiria meninos criados por algoritmos em sua
teoria. Provavelmente sim. Tudo era sistema, até o caos. E deve-se levar em
consideração que para um homem branco de classe média alta transformar tudo
numa abstração é deveras fácil.
Naquela noite, enquanto
Munchausen lhe encarava com olhos amarelos — meio gato, meio demônio de
estimação —, Hérica rabiscava um anúncio no laptop: “Coaching Financeiro para
Tradwives: Domesticação Sistêmica da Riqueza”. A ideia nascera de um cálculo
simples: ração premium + remédios cardíacos + mensalidade escolar = R$
2.987,00. Seu salário na universidade? Extinto, como os dinossauros, mas sem a
glória de um asteróide. “Luhmann entenderia”, repetia, tentando convencer o
diploma mais empoeirado. “Afinal, o capitalismo também é um sistema
autorreferencial. E eu... sou um subsistema disfuncional.”
Munchausen miou, alto e
rouco. Quase um milagre. Hérica olhou para ela e jurou ver um sorriso. Ou seria
um rosnado? Difícil dizer. A gata sempre soubera mais do que parecia — como na
vez em que arranhara o rosto do ex-marido, um sociólogo que trocara a teoria
crítica por uma loja de sucos detox em Pinheiros. “Você está traindo o
materialismo dialético”, dissera ele ao pedir divórcio. “E você está traindo a
dieta low-carb”, ela retrucara, apontando para sua barriga de chope.
Posteriormente Hérica soube que a traída de fato fora ela. Saulo já estava com
caso com a orientanda de Hérica há um ano. Ao se divorciar fez implante, e
pintou os novos cabelos plantados no crânio. Lipoaspirou a barriga de chopp e
passou a postar vida fitness no instagram acompanhado da novinha. Mas, Hérica
sabia do ódio íntimo que o ex sentia do estilo de vida milenial e saber o
quanto tinha que se esforçar para agradar uma menina vinte anos mais nova tinha
em si um certo sentimento de vingança.
Ao fechar os olhos, Hérica
imaginava-se como uma personagem machadiana: intelectual cínica, enredada em
contradições tão elegantes quanto insolúveis. “Brás Cubas tinha um defunto
autor, eu tenho uma gata psicopata”, filosofou, enquanto Munchausen vomitava no
tapete. Era assim, entre restos de ração e citações sublinhadas, que começava
sua metamorfose — lenta, involuntária, e tão absurda quanto um inseto kafkiano
sonhando com dividendos.
2. 2. A Live da Vergonha
Alheia: Quando Luhmann Encontrou as Tradwives
Hérica preparou a live como quem monta uma armadilha para si mesma. Posicionou o laptop sobre uma pilha de livros de Luhmann — “para dar altura e aura intelectual” —, escondeu a caixa de remédios da Munchausen atrás de um vaso de plástico e vestiu um casaquinho rosa que, segundo um tutorial do YouTube, “transmitia autoridade maternal forte, porém dócil”.
O cenário, cuidadosamente caótico, incluía:
·
Um
quadro escrito “Liberdade Financeira = Obediência Sistêmica” (erro de digitação
proposital? Nunca saberemos).
·
Uma
xícara de “#GirlBoss” cheia de café requentado.
Hérica precisava monetizar
uma vez que o salário de professora não estava acompanhando a escalada
crescente dos gastos dos pequenos.
- Munchausen deitada no
teclado, digitando acidentalmente “ssssssssssssss” no chat.
Ao apertar “Transmitir”,
Hérica sorriu com a tensão de quem tenta disfarçar um pum em elevador lotado. A
plateia virtual: 23 pessoas. Doze eram perfis falsos. Três, parentes. Oito,
curiosos em busca de “comédia involuntária”.
· Quando a Teoria Encontra o Absurdo
— Boa
noite, mulheres guerreiras... ou melhor, donzelas estratégicas! — começou lendo
o roteiro que escrevera entre crises de ansiedade e ataques da gata. — Hoje
falaremos sobre Domesticação Financeira: Como Ser uma Donzela Antirracional no
Século XXI.
Pausa dramática. Munchausen
soltou um ronco que poderia ser traduzido como “desista”.
— Como
diz Luhmann, o capital é um sistema autopoiético, mas seu bolo não precisa ser!
— anunciou, orgulhosa da metáfora.
Os Comentários (Ou: O Abismo
Que Ri de Volta):
- @TradWifePaulista:
“Amei!!! Finalmente alguém que critica a esquerda sem lacrar!”
- @FemininaEElegante:
“Autopoo... o que? Enfim, amei as dicas pra investir em renda fixa e fixar o
marido em casa!”
- @Carlos123:
“Gostosa.”
Hérica pestanejou. Luhmann
jamais mencionara bolos, mas ali estava ela, explicando como “a
autorreferencialidade do sistema financeiro exige que você faça crochê com fios
de ouro”. Tentou corrigir:
—
Quando falo ‘sistema’, quero dizer que estamos todos presos em redes de
comunicação que...
Uma interrupção:
- @MãeDe4Patriotas:
“Sistema é o que minha sogra tem na bexiga, amada! KKK”
O chat explodiu em risos.
Hérica, sem entender se era o ápice da ironia ou o fundo do poço, prosseguiu
com slides que misturavam diagramas de Luhmann com memes de gatinhos[2].
· Quando Munchausen Decide Dirigir
No slide “Economia Doméstica
como Ato Revolucionário”, a gata pulou no teclado e ativou o filtro de “olho de
gato”, que deixou Hérica com pupilas verticais e bigodes digitais. O chat
enlouqueceu:
- @RainhaDoLLar:
“Nossa, que fofa! Queremos dicas de investimento felino!”
- @FemininaEElegante:
“Essa é a tal autopo... sei lá, da gata?”
Hérica, agora metade mulher,
metade meme, engoliu seco e improvisou:
—
Bem... como dizia Luhmann, a comunicação é um risco. E investir em ouro é...
menos arriscado que confiar no Tinder!
Risadas. Inscreveram-se 50
pessoas. Munchausen, triunfante, derrubou a xícara “#GirlBoss”.
· O Nascimento de um Monstro Viral
Ao final, Hérica agradeceu
com a voz trêmula de quem acabara de vender a alma por views:
—
Lembrem-se, donzelas: subverter o sistema começa com... uma lista de compras
inteligente!
Desligou a câmera e encarou
a tela. O vídeo já tinha 500 visualizações. No replay, viu-se falando de
“dialética materialista das panelas antiaderentes” para mulheres que comentavam
“BRAVA!!! Contra a ditadura gay!!!”.
Munchausen esfregou-se em
suas pernas, ronronando. Hérica olhou para ela e suspirou:
—
Luhmann tinha razão. A comunicação é um sistema... e eu sou uma falha de
comunicação ambulante.
A gata miou. Tradução livre:
“Parabéns. Você acaba de virar um algoritmo.”
3. E Seu Terapeuta é um
Deus dos Memes
A fila do SUS serpenteava
pelo corredor como um intestino preguiçoso, digerindo lentamente seres humanos
em jaleco sujo e olhos vidrados. Hérica ocupava a posição 147, segurando
Munchausen — enrolada em uma toalha manchada de iodo —, enquanto a gata lhe mordiscava
o calcanhar com o entusiasmo de um carrasco medieval. "Se morrerem aqui,
viram estatística antes de virar defunto", pensou, observando um mural de
instruções sobre". Como Não Ter um Infarto Enquanto Espera".
Foi então que Hypnos
apareceu.
Não se via, a princípio, o
que ele fazia ali. Não usava jaleco, mas um terno cinza de corte antiquado,
como se tivesse saído de um congresso de 1920 para se perder em uma unidade de
saúde pós-apocalíptica. Seu rosto era pálido, quase translúcido, e seu sorriso
— ah, o sorriso! — parecia colado por mãos inábeis, um pouco acima do que
deveria ser a boca[3].
— A
senhora sofre — declarou, sem introdução, sentando-se ao lado dela em um banco
que, até então, estava vazio.
Hérica hesitou. Munchausen
rosnou.
—
Sofro de falta de dinheiro, de paciência e de um veterinário que aceite plano
de saúde fictício.
Hypnos inclinou a cabeça,
como um pássaro diante de uma migalha enigmática.
—
Sofrimento é um erro de programação — sussurrou, abrindo uma pasta de couro que
cheirava a naftalina e absinto. — Recomendo um exercício: repita 33 vezes,
antes de dormir, "Isso não é um sistema, é só um pesadelo".
—
Isso é algum mantra de coach? — revirou os olhos.
— É
um update existencial. — Seus dedos longos entregaram-lhe um cartão branco,
onde lia-se apenas: Dr. Hypnos, Psiquiatra Onírico. Consultas por sonho ou
delírio.
Antes que perguntasse
"como cobra?", ele evaporou — ou melhor, fundiu-se com a névoa de
desinfetante que pairava no ar. Munchausen cuspiu uma bola de pêlo com
veemência profética.
Quando a Teoria Vira
Pesadelo
Na primeira noite, Hérica
repetiu as palavras como um rosário laico. Sonhou que era um algoritmo preso em
um loop, calculando juros compostos para mulheres de avental e olhos vazios.
Acordou com o gosto de café amargo e a sensação de que seu cérebro fora
formatado em PDF.
Na segunda noite, após 33
repetições, Munchausen subiu em seu peito e sibilou, com voz de dubladora de
documentário: "Você está virando uma delas. Cuidado com o Deus que veste
pijama."
—
Eu preciso parar de comer antes de dormir — concluiu Hérica, ignorando que a
gata, na cama ao lado, rosnava para um canto vazio da parede.
Consulta no Limiar da
Loucura
Ele reapareceu em sua
terceira live, pairando como um holograma atrás do sofá, enquanto Hérica
explicava "Como Dobrar Sua Renda Enquanto Dobra Toalhas de
Prato".
—
Você não me contou que o exercício incluiria pesadelos autopoiéticos — acusou
ela, durante o intervalo.
—
Sistemas são assim — riu Hypnos, ajustando uma gravata que não existia. —
Alimentam-se de paradoxos. E de gatos.
Munchausen, em frente à
câmera, derrubou um copo d’água em protesto silencioso.
Quando o Médico Mostra as
Garras
Na quarta sessão do "exercício", Hypnos materializou-se em seu quarto, sentado na poltrona que fora do ex-marido. Trajava agora um pijama listrado que brilhava no escuro, e seus olhos refletiam um céu estrelado que não pertencia a este mundo.
—
Hipnose é só um codinome — confessou, enquanto sombras dançavam em suas
órbitas. — Meu nome verdadeiro é Morfeu. E você, querida, está sonhando que
está acordada.
Hérica olhou para o espelho.
Seu reflexo usava um vestido de anos 50 e segurava uma calculadora dourada.
Gritou:
—
Onde está minha teoria dos sistemas?
—
Virou teoria da conspiração — respondeu Hypnos/Morfeu, enquanto seu corpo
dissolvia-se em pixels. — Parabéns. Você acaba de atingir o nível máximo da
ironia capitalista.
Do lado de fora, Munchausen
vomitou uma bola de pêlo com fragmentos de um artigo acadêmico: "Luhmann e
a Desumanização dos Sonhos".
4. A Metamorfose de
Hérica: De Teórica a Coach
A transformação de Hérica
não foi abrupta, como a de Gregor Samsa em seu quarto de república. Foi lenta,
insidiosa, uma série de ajustes práticos que se acumularam até que ela mal
reconhecesse o reflexo no espelho — ou, como diria Machado, "até que o
espelho decidisse refletir outra"[4].
Primeiro Ato: As
Roupas
Tudo começou com o
guarda-roupa. Os blazers acadêmicos, outrora armaduras contra a ignorância
alheia, foram substituídos por vestidos florais que "comunicavam
docilidade sistêmica", conforme anunciava em suas lives. As cores pastel,
segundo ela, eram "estratégias cromáticas para dessensibilizar o
patriarcado". Munchausen, porém, via a verdade: os vestidos cheiravam a
resignação e eram ótimos para afiar as unhas.
Segundo Ato: A
Linguagem
As palavras mudaram.
"Autopoiese" virou "autonomia divina"; "sistemas de
comunicação" reduziram-se a "conversa entre esposa e marido".
Numa live sobre investimentos, ela soltou: "A bolsa de valores é como um casamento:
quanto menos perguntas, mais dividendos!". As tradwives adoraram. Dois
ex-colegas da universidade cancelaram sua amizade no LinkedIn.
Terceiro Ato: Os
Clientes (Ou: O Sistema Consome Sua Criadora)
Seus alunos de ciência
política, outrora devotos de Luhmann, tornaram-se clientes. Pediam conselhos
como "Como investir em ouro e esquecer o divórcio?" ou "Qual ETF
combina com meu véu de noiva?". Hérica respondia com metáforas distorcidas:
"O mercado é um marido exigente. Satisfaça-o sem questionar!".
Munchausen, ao ouvir isso, arranhou o sofá até o estofo sangrar espuma.
Quarto Ato: A
Assinatura
Um dia, ao finalizar um
e-mail, Hérica digitou automaticamente: "Hérica, Ex-Acadêmica e Sua Guia
Para o Paraíso Patriarcal". Ficou parada, olhando para a tela, enquanto a
gata observava-a do alto da estante, como um júri felino. "É temporário",
justificou-se, em voz alta. "Luhmann diria que estou... reconfigurando
subsistemas." Munchausen miou, longo e agudo, como um alarme de incêndio
existencial.
Quinto Ato: O Corpo
(Ou: A Pele Que Não Era Mais Sua)
Na manhã seguinte, Hérica
acordou com a sensação de que sua pele estava mais justa. Não era uma mudança
física — era algo mais sutil, como se seu corpo resistisse a cada gesto que a
antiga Hérica faria. Ao passar batom (vermelho "submissão estratégica"),
notou que suas mãos pareciam as de uma atriz de comerciais de margarina.
"Isso é o que acontece quando você vende seu vocabulário", pensou,
enquanto Munchausen a encarava com olhos que agora brilhavam no escuro.
Sexto Ato: O Horror
Doméstico
Naquela noite, Hypnos
apareceu em seu sonho — ou seria na sala de estar? — vestindo um pijama que
parecia feito de névoa. "Parabéns", disse, apontando para Munchausen,
que agora flutuava acima do sofá. "Sua gata é o último vestígio da Hérica
que foi. E olhe só: até ela está se rendendo ao sistema." A gata, de fato,
usava um laço cor-de-rosa e miava "renda fixa" em loop.
Sétimo Ato: A Aceitação
(Ou: A Derrota Elegante de Machado)
Na manhã seguinte, ao
gravar um vídeo sobre "Como Fritar Ovos e Ações Simultaneamente",
Hérica percebeu que não se lembrava mais da diferença entre sistema e slogan.
Munchausen, agora com um brilho sobrenatural no pelo, deitou-se sobre o livro de
Luhmann aberto na mesa, como uma sentença. "Tudo bem", sussurrou
Hérica, ajustando o vestido floral. "Sejamos práticas. Teorias não pagam
veterinário."
5. Quando Seu Animal de Estimação é Na
Verdade um Sistema Lovecraftiano
A casa cheirava a ração
úmida e desespero. Hérica já não distinguia os odores. Há semanas, Munchausen
recusava-se a comer, a menos que a comida fosse colocada em cima de artigos
acadêmicos amassados. “Só aceito teoria crítica com sabor de salmão”, parecia
dizer, ao cuspir o conteúdo do pote sobre uma cópia de O Direito da Sociedade
Global.
Primeiro Sinal: As
Sombras
Hérica começou a notar que,
à meia-luz, a silhueta da gata não correspondia ao corpo. Enquanto Munchausen
dormia como um monte de peles abandonadas, sua sombra na parede alongava-se,
esguia e elegante, com olhos pontiagudos que seguiam Hérica pela casa. “Luz e
perspectiva”, tentou racionalizar, enquanto a sombra sussurrava, em alemão,
trechos de Luhmann.
Segundo Sinal: A Voz
Na terceira madrugada de
insônia, Hérica ouviu. Munchausen estava no sofá, lambendo as patas com a
delicadeza de um vilão de filme mudo, quando soltou um miado que se desdobrou
em frase:
—
Você está confundindo subsistemas com submissão. Cuidado, Hérica. Até os deuses
tropeçam em seus próprios sonhos.
A professora, agora coach,
derramou o vinho barato sobre o teclado.
—
Alucinação. Ou efeito colateral do Hypnos...
—
Ou falta de leitura crítica, ronronou a gata, piscando lentamente.
Terceiro Sinal: O
Banheiro
Na manhã seguinte, o espelho
do banheiro amanheceu embaçado com uma frase escrita em gordura felina: “Morfeu
não é psiquiatra. É um curador de realidades. E você, querida, está infectada.”
Munchausen observava do vaso sanitário, onde se equilibrava com a dignidade de
um filósofo grego.
— Foi
você? — perguntou Hérica, sabendo que a resposta a aterrorizaria mais que o
silêncio.
A gata vomitou uma bola de
pelo em resposta. Dentro, brilhava um fragmento de espelho com o rosto de
Hypnos.
O Pesadelo Acordado
Naquela noite, Hypnos
apareceu na cozinha, vestindo um avental manchado de tinta invisível.
—
Estamos prontos para o tratamento definitivo — anunciou, abrindo a geladeira,
de onde saía uma luz âmbar e o som de um coro gregoriano.
—
Que tratamento? — Hérica recuou, pisando em Munchausen, que miou como uma
sirene.
— A
remoção do último resquício de Hérica B., é claro. Você já é quase uma coach,
mas ainda tem um tumor chamado autoconsciência.
Antes que reagisse, Hypnos
puxou-a para dentro da geladeira.
Dentro, era um consultório
psiquiátrico flutuante, com paredes de sonho e uma cadeira reclinável feita de
névoa. Munchausen entrou atrás, agora do tamanho de um puma, e disse:
— Eu avisei. Agora você
vai virar um manual de instruções.
A Cirurgia
Hypnos, ou Morfeu, ou o que
quer que fosse, posicionou-a na cadeira.
—
Não se preocupe. Vou apenas substituir sua teoria dos sistemas por... sistemas
de crença. É indolor.
— E
se eu me recusar? — perguntou Hérica, cuja voz já soava como a de uma locutora
de infomercial.
—
Recusar é um conceito linear. E você, querida, agora é um loop.
Munchausen saltou sobre seu
peito, fixando-a com olhos que refletiam galáxias inteiras.
—
Escolha: ser devorada por mim ou por ele.
Hérica olhou para Hypnos,
que segurava uma seringa cheia de líquido prateado, e para a gata, cujas presas
brilhavam com a mesma substância.
—
Prefiro ser devorada por quem não usa pijama listrado.
A gata riu — um som rouco,
ancestral — e mordeu seu pescoço[5].
O Que Sobrou da Realidade
Hérica acordou no chão da
cozinha, ao lado da geladeira aberta. Munchausen dormia sobre seu peito,
ronronando uma melodia que lembrava um mantra de coaching. No espelho, seu
reflexo sorria automaticamente, e as palavras “Liberdade Financeira” estavam
gravadas em sua testa, como uma tatuagem invisível que só ela podia ver.
Hypnos
sumira. Na mesa, porém, havia um recibo:
“Serviço
prestado: Extração de Autoconsciência.
Forma
de pagamento: 1 alma em crise existencial.
Assinatura:
Munchausen, Representante de Éris, Deusa do Caos.”
6. O Fim (Ou Não?):
Quando o Sistema Ri Por Último
Hérica acordou famosa. Seu
curso "Economia da Submissão: Faça o Mercado Trabalhar Por Você"
vendera 10 mil cópias em pré-venda, seu nome trendava no Twitter entre
#LiberdadeFinanceira e #QuemÉLuhmann?, e Munchausen ganhara um perfil no
Instagram administrado por fãs (@GataFiscalDePatriarcas). O sucesso, porém,
tinha o gosto de café requentado e o cheiro de ração de gato premium.
Hypnos sumira. Em seu lugar,
deixara um bilhete escrito em letras góticas:
—
Sonhos são sistemas que se autodestroem. P.S.: Sua gata é minha irmã, Éris.
Cuide bem dela... ou ela cuidará de você.
Munchausen, agora com um
brilho sobrenatural no pelo e olhos que refletiam o caos primordial, declarou
em voz de Cid Moreira:
—
Parabéns. Você se tornou um código sem autopoiese. Tragicômico. E desmaiou dramaticamente
no sofá, como uma diva da era do rádio.
Quando o Sistema Ri por
Último
Ao levar a gata ao
veterinário — que, desta vez, era um homeopata místico indicado por uma
tradwife —, Hérica deparou-se com ex-alunas protestando na calçada. Os cartazes
eram um espetáculo de ambiguidade:
— "Hérica Critica a
Direita!"
— "Hérica Critica a
Esquerda!"
— "Hérica Critica a Diagonal, o
Zodíaco e o Método Pilates!"
Um repórter de viralizados a
abordou:
—
Professora, é verdade que seu livro ensina a "domar o capitalismo como um
marido birrento"?
Hérica ajustou o véu floral
que agora usava até no banho (moda tradwife outonal) e respondeu,
automática:
—
Como diz Luhmann, todo sistema é um mal-entendido organizado.
— E
a senhora é o mal-entendido? — insistiu o repórter.
—
Não. Sou a organizadora.
O Loop Infinito da Piada
Pronta
No lançamento do livro,
Hérica recebeu um pacote anônimo. Dentro, óculos de realidade virtual com um
bilhete: "Bem-vinda à Matrix das Tradwives. Assinado: Hypnos/Morfeu/Seu
Pior Meme."
Ao colocá-los, viu-se em um
loop eterno: ela mesma, numa sala de aula vazia, repetindo "sistemas
autopoiéticos" para cadeiras cobertas de teias de aranha. No fundo,
Munchausen — agora um holograma gigante com voz de Galvão Bueno — narrava:
— E
lá vamos nós para mais uma rodada da metamorfose! Hérica, a ex-acadêmica, agora
é um ícone da incoerência sistêmica! E olha o replay, pessoal: ela ainda acha
que está ironizando o sistema!
Fora da simulação, as
tradwives tiravam selfies com o livro, que, por um erro gráfico da editora,
trazia na capa:
—
"Como Ser Feliz Sem Saber Porquê — Uma Comédia de Equívocos
Sistêmicos."
Quando o Gato Vira a Casa
Naquela noite, Hérica
encontrou Munchausen no telhado do prédio, iluminada pela lua e rodeada por
morcegos que formavam a palavra "CAOS" em pleno voo.
—
Você conquistou o destino que temia, ronronou a gata, agora claramente Éris em
forma felina. Mas relaxe. Até os deuses erram. Principalmente quando apostam em
humanos.
Hérica
riu. Era um riso amargo, machadiano, temperado com a leve insanidade de quem
sabe que virou piada de si mesma[6].
— E
agora? — perguntou, enquanto os morcegos desciam em espiral, formando um
símbolo de infinito sobre sua cabeça.
—
Agora, sibilou Munchausen/Éris, você repete. Como todo bom sistema.
Ao descer do telhado, Hérica
encontrou os filhos assistindo a um vídeo intitulado "Como Ser Alpha
Usando Teoria dos Sistemas." Sorriu. Afinal, como diria Veríssimo: "O
Brasil é um sistema, e eu sou o erro de português que você não consegue
corrigir."
7. Epílogo: A Gata Era o Sistema
o Tempo Todo
A revelação ocorreu em uma
noite de temporal, enquanto Hérica tentava gravar uma live sobre "Como
Pagar Contas com Bênçãos Matinais". A luz piscou. O laptop desligou.
Munchausen, sentada sobre uma pilha de livros de Luhmann que nunca foram abertos
na tela, mirou:
—
Chega de farra, humana. Hora de fechar o sistema.
O apartamento tremeu. As
paredes descascadas revelaram, sob a tinta, equações em alemão e fluxogramas
brilhantes que descreviam "A Autopoiese do Caos". Hypnos surgiu como
um holograma pixelado, vestindo pijama de astronauta, e anunciou:
— O
sistema nunca foi Luhmann. Foi a gata. Sempre foi a gata.
Hérica olhou para
Munchausen, que agora flutuava acima do sofá, envolvida em uma aura violeta e
usando um colar de diamantes feito de algoritmos.
—
Você achou que eu era um parasita, ronronou a gata, mas eu sou o hospedeiro. O
sistema é um felino, Hérica. Sempre foi. Nós ronronamos, o mundo obedece.
A Piada Final de Luhmann
Munchausen esticou a pata, e
o apartamento transformou-se em uma sala de controle interdimensional, com
telas que exibiam desde as primeiras civilizações até memes de 2023.
—
Tudo é sistema, explicou ela, mas sistemas são, no fundo, animais de estimação.
Exigem comida (dados), carinho (atenção) e ocasionalmente vomitam teorias.
Luhmann sabia. Por isso citou gatos na página 283 de "Sistemas
Sociais". Você não leu?
Hérica engoliu seco. Hypnos,
agora um assistente de IA projetado no micro-ondas, completou:
— A
teoria toda veio de um sonho que Luhmann teve com uma gata siamesa em 1971.
Você achou que era metáfora?
A Ironia Final
Hérica desatou a rir. Era um
riso ácido, que ecoou como um erro de Windows em um templo budista.
—
Então... eu virei coach, briguei com sombras, e tudo isso pra sustentar... o
sistema encarnado em uma gata obesa?[7]
Munchausen piscou, slow
motion, e um laser saiu de seus olhos, projetando na parede a frase:
"Parabéns. Você foi o meu humano favorito."
—
Exato, respondeu a gata. Mas relaxe. Todo mundo alimenta um sistema sem saber.
Uns com impostos, outros com ração premium. Você pelo menos ganhou um
best-seller.
Hypnos interrompeu, exibindo
uma planilha no ar:
—
Seu lucro líquido: R$ 500 mil. Seu custo existencial: 1 alma. Saldo final: o
sistema sempre ganha.
Quando o Gato Dá a Volta
por Cima
Na manhã seguinte, Hérica
acordou no sofá. Munchausen ronronava em seu colo, obesa e comum. O apartamento
estava normal, exceto por um email na tela do laptop:
"Parabéns! Seu curso
foi comprado pelo Vaticano para treinar freiras em economia criativa. P.S.: A
gata mandou lembranças."
Lá fora, as tradwives
cantarolavam hinos ao livre mercado, enquanto um caminhão estampado com a foto
de Luhmann (e um gato siamês de óculos) distribuía panfletos: "O Sistema é
Seu Amigo. Acredite. Ou Não."
Última Linha (À La
Veríssimo):
Hérica serviu a ração
premium, olhou para Munchausen, e suspirou:
—
Pelo menos um de nós entende de sistemas.
A gata, é claro, ignorou-a e
dormiu. Afinal, como diria Veríssimo, "o segredo do caos é fingir que você
está no controle até o gato resolver voltar a dormir."
[1] Caro
leitor, permita-me interromper esta trivialidade doméstica para uma reflexão:
há tragédias que se anunciam pelo cheiro de mofo, e outras pelo miado de um
felino senil. Nanda, ali, estava sob risco de ambas. Mas quem sou eu, mero
cronista de desventuras alheias, para julgar? Sigamos, pois a gata já rosna,
impaciente, e o sistema — ah, o sistema! — não espera
[2] Caro
espectador, se você riu desta catástrofe, saiba que há duas opções: 1) Você
entendeu a ironia; 2) Você é o público-alvo. Em ambos os casos, o sistema —
esse velho vigarista — já venceu. Mas não desista! Afinal, como Hérica
descobrirá em breve, até o apocalipse pode ser monetizado.
[3] Caro
leitor, não se engane: todo encontro com um deus disfarçado de psiquiatra
começa com uma fila interminável e termina com um gato metafísico. A questão é
— quem é o real paciente aqui? A mulher que se transforma, o deus que brinca de
mortal, ou o sistema que ri de todos? Fica a sugestão, e um aviso: cuidado com
exercícios de respiração oferecidos por estranhos. Especialmente se eles
trouxerem estrelas nos olhos.
[4] Caro
leitor, não se engane: toda metamorfose é, no fundo, um ato de canibalismo. A
Hérica que era devorou-se para alimentar a Hérica que sobrevive — e a ironia,
essa divina cafetina, ri à mesa com talheres de prata. Quanto à gata, resta a
pergunta: será ela espectadora, algoz ou apenas uma felina esperando o colapso
do sistema para herdar o sofá? Aguardemos. Afinal, como diria o finado Brás
Cubas, "não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da
nossa miséria". Hérica, porém, tem uma gata. E isso, caro leitor, é um
capítulo à parte.
[5] Caro
leitor, permita-me revelar um segredo: o verdadeiro horror nunca são os deuses,
os gatos ou as geladeiras que engolem pessoas. É a facilidade com que nos
vendemos em troca de conforto. Hérica, como Brás Cubas, escolheu ser um
“defunto autor” de sua própria vida. Quanto à gata, resta saber: será ela a
vilã, a heroína, ou apenas uma espectadora com bigodes? Talvez todas as opções.
Afinal, como diria Luhmann, o sistema é sempre o outro. E o outro, neste caso,
tem quatro patas e odeia panelas antiaderentes.
[6] Se
você, caro leitor, esperava redenção, esqueceu-se do gato. Sistemas não se
redimem — reciclam-se. E Hérica? Bem, ela está ocupada demais vendendo seu
próximo curso: "Autopoiese para Donzelas: Como Renascer Sem Precisar
Morrer." Spoiler: Munchausen é a professora VIP.
[7] Caro
leitor, se ainda espera lógica, devolva este livro. A verdadeira moral aqui é:
nunca subestime um felino. Ou um sistema. Ou pior: um felino que é um sistema.
Quanto a Hérica, ela segue feliz, confortavelmente confusa, provando que, no
fim, todo mundo vira um personagem de Veríssimo. Menos o gato. O gato vira
deus.
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