Ordem
e Progresso.[1]
“Ordem e Progresso”. O sintagma expresso num dos mais altos
símbolos de nossa nação, a bandeira nacional, confirma a afirmação feita pelo
sociólogo A. C. Pires, a saber: “Vivemos num mundo que ainda se considera
herdeiro da ‘filosofia das luzes’” (Pires, 2012, p. 16).
O ideal de ordem e
progresso assumido como bordão e destino por nossa nação representa o ideal constitutivo da modernidade. O problema aí é que
o tempo passou e as condições que gestaram esse ideal de modernidade como forma
válida para interpretar e viver no mundo mudaram com a passagem do tempo.
Nosso objetivo
neste texto será reconhecer os contornos fundamentais da modernidade, que ainda
nos assombra bem como chamar a atenção para características especificas deste
período em que vivemos, a pós-modernidade.
Reconhecer
aspectos fundamentais da pós-modernidade torna-se importante porque é nesse
tempo que vivemos. Também
porque esse período se propõe a “pacificar o horizonte conflituoso de
coexistência dos diferentes mundos” (Pires, 2012, p. 16).
Que
mundos são estes ao qual o sociólogo se refere? É disto que falaremos a seguir.
E fundamentalmente, quais são as consequências desse tempo histórico para a
identidade individual de cada um de nós?
Ruptura, Uma Nova Disposição Comportamental.
A modernidade é
marcada pela ruptura ou descontinuidade com períodos históricos que a
precederam. É o que afirma o britânico Anthony Giddens. Este sociólogo afirma
que: “os modos de vida produzidos pela modernidade nos desvencilharam de todos
os tipos tradicionais de ordem social de uma maneira que não tem precedentes”
(Giddens, 1991, p. 14).
O
autor se refere às mudanças e descontinuidades que podem ser observadas nas
instituições modernas. E ele aponta três descontinuidades fundamentais do
período moderno em relação aos períodos tradicionais anteriores:
O
primeiro é o ritmo da mudança.
Sociedades modernas são mais dinâmicas em relação ao seu funcionamento interno
quando comparadas às sociedades tradicionais que as precederam.
Isto
é verdade tanto para o ritmo de mudança político quanto para o tecnológico. O
ritmo de mudanças tecnológicas, na verdade, poderia ser utilizada como exemplo
para o ritmo de mudanças que acontecem nas sociedades modernas como um todo,
veja as mudanças nas estruturas familiares e de relacionamentos íntimos como um
exemplo. As inovações nos arranjos familiares contemporâneos tem sido
constantes e nesse sentido acompanham a revolução tecnológica que temos
presenciado nas ultimas das décadas ao reboque do progresso do setor de
informática. O ritmo das mudanças constituem algo inédito até hoje na história
das sociedades Ocidentais.
A
segunda característica da descontinuidade da mudança é o “escopo da mudança”. Esta característica esta relacionada com a
interconexão entre diferentes regiões do planeta que operam uma transformação
subjetiva da noção de espaço em cada indivíduo. Esta transformação produz uma
impressão de que todo o globo está virtualmente conectado bem como de que as
distancias geográficas estão reduzidas. Essa impressão de interconexão entre
diferentes lugares e ações é o que produz a sensação psicológica de uma
sociedade em risco de cataclismo ecológico constante e relacionada a essa
sensação o sentimento de incerteza do que fazer ante os novos riscos.
A
terceira característica, por fim, trata da natureza
intrínseca de instituições modernas. Algumas formas sociais como: o
Estado-Nação ou a completa transformação em mercadoria o trabalho assalariado,
simplesmente não existiam em períodos históricos precedentes.
Estas
três características da modernidade constituem eixos fundamentais da
experiência cotidiana contemporânea e marcam sua ruptura prática com as
sociedades tradicionais pré-modernas.
Giddens ainda faz
uma distinção entre a primeira modernidade, que podemos considerar como
iniciada a partir do século XVII, da experiência da vida moderna contemporânea,
ressaltada por meio das três características citadas acima. Ele faz isso ao
atribuir o adjetivo tardia ao conceito de modernidade. Assim, vivemos na
modernidade tardia.
Porém,
Giddens não enfatiza uma condição essencial para que estas características
sejam possibilitadas. Esta característica é a ruptura com o pensamento
tradicional religioso, operado a partir da filosofia das luzes.
“O discurso da modernidade arrogou para si a
prerrogativa de querer libertar o ser humano da escura caverna em que a
religião e a tradição no Ocidente o haviam colocado” (Pires, 2012, p. 16).
Segundo o prof. Pires, a doutrina do pecado original poderia se impor como um
obstáculo ao ideal de progresso proveniente do espírito racional da filosofia
das luzes.
Desta
forma a modernidade teve como sua característica mais pontual a utilização
intensa a razão instrumental como forma valida de interpretar o mundo. Tal
razão instrumental é auxiliada pelo uso do método demonstrativo. Quer dizer,
passamos a pensar e a interagir com o mundo através da racionalidade empírica.
Na pratica passamos a confiar apenas na capacidade de demonstrar objetivamente
a realidade e essa se tornou a nossa forma prioritária de conceber o mundo A
forma válida e irrefutável.
A
ordem e o progresso ao qual se referem às palavras da bandeira nacional
fundamentam-se neste ideal de verdade acerca das coisas existentes. Quer dizer,
só pode haver a verdade que é demonstrável e objetivamente comprovada, assim
como é por meio do progresso material que se chega à ordem e ao progresso,
baseado no ideal racional de existência que se verifica através das qualidades
de uma razão que pode ser demonstrável de uma sociedade.
Pós-Modernidade, Morte Das Grandes Narrativas E Morte Do Ético
A
verdade é que estes ideais baseados na disposição racionalista e progressista
original dos filósofos do período iluminista∕moderno criaram raízes na
consciência coletiva Ocidental moderna.
O
conceito de pós-modernidade cunhado por Lyotard, filósofo francês, tentou
indicar a superação destas características modernas na Europa do século XX.
Lyotard tentou indicar a “morte das grandes narrativas” com esse conceito de
pós-modernidade. Isso significa que as crenças nos ideais de ordem e progresso
deixaram de ser tão fundamentais quanto no inicio da modernidade. Na prática,
essa morte das grandes narrativas representa, segundo a interpretação do
filosofo é a perda da legitimidade de instituições como a ciência e a religião
na subjetividade dos indivíduos contemporâneos.
No
entanto, Lyotard está apenas parcialmente correto em seu diagnóstico sobre a
vida contemporânea. Isto porque, a racionalidade capitalista ainda se apoia na
razão demonstrativa para fundamentar suas explicações sobre a vida, o universo
e tudo o mais. E apesar de protestos e chiados abafados de cientistas
esporádicos, a ciência ainda tenta formular explicações sobre a realidade e a
existência. A tentativa do mapeamento do DNA é ainda um esforço nesse sentido.
Também porque a religião e a ciência continuam presentes no horizonte
hermenêutico dos indivíduos modernos.
A
modernidade tardia de Giddens é a mesma pós-modernidade de Lyotard. Os dois
conceitos se referem a nossa vida contemporânea. Nesta vida a religião deixou
de ter um peso fundamental para determinar as escolhas da vida, mas não
desapareceu completamente da sociedade. Também a ciência deixou de ser a única
forma de se defender a verdade, mas o método demonstrativo ainda é a forma
preferível de se defender a existência de alguma verdade.
O
conceito de pós-modernidade é equivocado, pois o pós supõe a superação de um
período histórico e como acabamos de afirmar características importantes do
mesmo ainda estão presentes. A morte das grandes narrativas, das tentativas de
explicar a vida para dar a ela algum sentido ainda está presente no nosso
cotidiano. A morte da ética, como superação do seu sentido metafísico é o mais
importante de nosso período e é uma característica que nasce no período moderno
com a filosofia iluminista. Portanto, faz mais sentido tratarmos o período em
que nossa sociedade está como neomodernidade em lugar de pós-modernidade, ou modernidade
tardia, como tem feito alguns na sociologia.
A Disposição Hedocapitalista
É certo, no
entanto, que as explicações disponibilizadas pela ciência e pela religião a
cerca do mundo e da vida deixaram de ter sua validade monolítica e passaram a
se submeter aos critérios da disposição hedocapitalista da modernidade.
A
modernidade é o tempo histórico da sociedade hedocapitalista. A sociedade
hedocapitalista é a sociedade onde a ruptura com as tradições decretou a morte
do ético. Nela a cultura da repressão foi relativizada em função da
desenvoltura psicocognitiva do “eu reflexivo”. Quer dizer, , seja ele por
qualquer via e não um conjunto de regras hetero impostas, pela religião,
ciência ou um grupo determinado, como em períodos precedentes. O
hedocapitalismo é sistema socioeconômico que lucra com estas mudanças e as
fomenta.
Para
entender a vida contemporânea é preciso entender que a ruptura com a tradição efetuada
no passado elegeu o indivíduos como o único detentor legítimo da verdade. A
partir de então não há mais uma autoridade que não seja questionável a partir
dos critérios de bem estar e prazer eleitos unicamente pelos indivíduos.
A
partir de então fomos condicionados a viver em busca de nossa própria
felicidade, de nosso próprio prazer e a questionar qualquer realidade que se
coloque como obstáculo a esta busca.
A
partir de então passamos a coexistir sem a certeza de que existe uma escolha
certa, de que este uma escolha errada ou de que alcançaremos os objetivos que
estabelecemos no futuro. E ainda de que alcançando os objetivos estabelecidos
alcançaremos a felicidade pretendida.
Isto
porque, o ideal de progresso e de ordem passou a ser associado às ideias de
conforto e prazer. Assim, o ideal de ordem que auxiliou na estruturação
política da sociedade contemporânea com a organização racional da burocracia
estatal e do direito encaminha-se progressiva e constantemente para a direção
dos direitos das minorias e principalmente do indivíduo. E o ideal de progresso
por sua vez se aliou à ideia de progresso tecnológico e de conforto para os
indivíduos.
Estas
transformações produziram consequências psicológicas. A principal delas é o
senso de vulnerabilidade ontológica que os indivíduos enfrentam. A
vulnerabilidade ontológica é o medo derivado experimentado por todos os
indivíduos por causa das condições de vida modernas. Isto é, por causa da
ausência de certezas, provenientes da ruptura com a tradição o indivíduo foi
deixado a sua própria sorte, para fazer as próprias escolhas. A sorte de fazer
as escolhas certas é vivida em concomitância com a ansiedade de não se ter
certeza de que escolha é a certa a ser feita. E isto é acompanhando do medo
causado pela imprevisibilidade das transformações tecnológicas na modernidade.
O medo de que o desenvolvimento tecnológico planejado para nos dar conforto
cause o contrário do pretendido, a nossa própria destruição.
A
modernidade se constitui a partir dos ideais de ordem e progresso. Neste
sentido, o período moderno foi marcado pela ruptura com tradições,
principalmente as religiosas e pelo ganho da autonomia dos indivíduos. A ordem
que organizou as tradições políticas e direitos do indivíduo hoje está se
organizando cada vez mais como um código de condutas para proteger os direitos
individuais de um grupo seleto de indivíduos, os consumidores. O progresso que
fora idealizado para controlar a natureza e fazer do homem seu senhor tem se
mostrado como um perigo em potencial ante a natureza em descontrole abusada
pelo homem.
Diante
deste complexo desenrolo a psicologia do indivíduo mostra-se cada dia mais
comprometida em sua busca por gratificação∕prazer. Ao mesmo tempo, a psique
moderna mostra-se fendida pelo medo, medo não apenas dos perigos reais
existentes no mundo contemporâneo, mas sobretudo, do medo de não saber qual a
escolha certa a ser feita. O medo de não fazer sucesso (principalmente o
sucesso financeiro) e o medo de não ser amado – consequência do medo de não conseguir
o sucesso (financeiro e profissional) esperados.
[1]
Marcos Cristiano Dos Reis é o autor deste texto, ele é formado em teologia pelo
ISTL, também em ciências sociais pela Universidade Federal de Goiás, é mestre
em sociologia e é professor de sociologia e de filosofia no colégio OLIMPO de Araguaína - TO.
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