Essa Semana fui assistir ao filme do Ridley Scott, Êxodo –
Deuses e Reis. Gostaria de comentar um pouco sobre o que achei, como eu faço
sempre.
Antes faz bem lembrar um pouco, de forma rápida alguns
aspectos do livro base para o filme.
A primeira coisa que devemos lembrar é que o titulo do filme
é homônimo ao do segundo livro do Antigo Testamento. O Livro de Êxodo, cuja
autoria é tradicionalmente atribuída a Moisés, é possivelmente o mais
importante do Antigo Testamento. Nele podemos observar o desenvolvimento da
narrativa de como o povo de Israel estabelece o relacionamento com o Deus Único
(Adonais, Javé o Eu Sou). Nessa narrativa o protagonista é Javé, mas o
principal profeta, aquele que lidera o povo na fuga do Egito e que estabelece o
código moral e jurídico para esse novo povo e por isso ganha tanto destaque
quanto Javé é Moises.
Além disso, o livro de Êxodo pode ser considerado como um
épico literário, repleto de prodígios sobrenaturais, pragas, calamidades
ordenadas pelo Senhor (Adonai), mas também onde as paixões humanas, os medos e
ambições ganham destaque. Nesse texto observamos uma escrita bíblica elíptica,
poética, repetitiva muitas vezes lacunar. Javé surge na escrita como o
Libertador do povo que ama, mas também como um Deus caprichoso, ciumento e
muitas vezes, para a sensibilidade moderna, sanguinário e infantil. A sombra
que as lacunas da narrativa apresenta deixa espaço para diferentes
interpretações. O leitor atento muitas vezes é chamado a participar da leitura,
interpretação do texto imbuindo-lhe sentidos que muitas vezes não estariam
ali...
Penso que foi nessas brechas que se apoiou a dramatização
hollywoodiana de Ridley Scott.
MOISÉS, DE PASTOR A GENERAL
Uma das coisas que mais me chamaram a atenção neste filme
foi a transformação do personagem Moisés. Para mim, talvez devido a influência
da animação Príncipe do Egito, o Moisés que volta ao Egito, chamado por Deus, é
o pastor, alquebrado pelo medo e pelo drama de ter que fugir da corte do faraó,
pelos anos de pastoreio no deserto. Um Moisés com uma perspectiva de vida dos
pastores de Midiã e assombrado pela epifânia do Sagrado de Javé (Rudolfo Otto)
na sarça ardente. Enfim, um homem humilhado e submisso. Um pastor com pouca
disposição belicosa e com um profundo respeito pela cultura que tinha deixado para
trás.
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Moisés interpretado por |
O filme apresenta a visão de um Moisés, interpretado por
Christian Bale, criado como príncipe na corte do faraó. A ênfase neste filme,
como na animação, é na rivalidade entre Moisés e o príncipe Ramsés,
interpretado por Joel Edgerton, herdeiro legítimo ao trono. Vale lembrar que a
disputa entre os “irmãos” é algo próprio das produções hollywoodianas, mas não
está presente no texto bíblico. Se lembrarmos dos filmes predecessores ao que
agora discutimos vamos nos lembrar de: Os Dez Mandamentos (1956), de Cecil B.
DeMille, nesse o diretor introduziu uma disputa entre os dois grandes homens do
Egito pelo amor de Nefretiri. Na animação da Disney o drama entre os quase
irmãos se dá em torno da fome de poder e da responsabilidade das ações de cada
um.

Anyway. O novo filme apresenta um Moisés “porradeiro”. É o
que o jornalista José Geraldo Couto chamou de “infantilização bélica dos filmes
de ação”. O jornalista, acertou certeiramente ao dizer que o Moisés apresenta
no filme uma transformação de Moisés num “super-herói de força descomunal e
extremas habilidades marciais”. Além disso é mantida a tradição do herói bonito
e vigoroso seguindo aos padrões estéticos de beleza e virilidade estados
unidenses contemporâneo.
Como eu disse no inicio, eu estava acostumado a figura de
Moisés como um velho barbudo e com o corpo já indo “ladeira abaixo”, se
apoiando no cajado e completamente dependente de seu Deus por causa disso. Mas,
essa representação fere a sensibilidade dos públicos de hoje em dia, sedentos
pela ação frenética e pela violência sem sentido dos vídeo games e efeitos
especiais. Acho que isto vai de encontro com a critica de Bauman quando fala
que a cultura contemporânea é ávida por beleza que pode produzir satisfação instantânea.
Talvez se adéqüe também a representação de Deus no filme.
Scott renunciou tanto a representação abstrata de Deus em
meio a sarça ardente, onde a figura de Deus não aparece em nome da ênfase no
seu poder e glória que produzem no homem que se encontra com Deus a sensação de
finitude e dependência. Também renunciou a figura do Deus Paterno, velho, com
longa barba e que foi figurativo do Ocidente por séculos. Representação que
evocava a tradição, que nos nossos dias é automaticamente associada com a
castração do desejo individual. Em lugar disso o filme apresentou Deus como uma
criança geniosa e cruel. Fica aí a insinuação do que o diretor pensa sobre esse
Deus... (risos).
DEUS NA CULTURA CONTEMPORANEA
“Deus está morto”. Foi esse o grito da filosofia moderna
para a tradição religiosa Ocidental do século 19. Grito que ecoa até nós, que
não deixamos de ser religiosos, pelo contrário. Mas que abandonamos vários
aspectos da fé pré-moderna em nome dos ideais de conforto, satisfação,
felicidade e prestígio. Manter a figura de Deus nessa cultura foi possível somente
com uma acomodação do conteúdo tradicional as novas estratégias econômicas e
estilos de vida no Ocidente. Essa reinterpretação da figura de Deus foi feita
na filosofia e na psicanálise sobretudo.
Deus foi interpretado como uma projeção do indivíduo carente
devido as suas condições históricas. Quer dizer, numa sociedade técnica, onde a
desconfiança e a competitividade crescem e a afetividade e os laços de amizade
e familiares perdem significância a figura de Deus acaba aparecendo como o
personagem capaz de suprir essas necessidades. Outra interpretação é a de que
Deus, ou a religião, seja uma narrativa produzida a partir das classes sociais
privilegiadas. Uma narrativa que é capaz de estabilizar a estrutura social
condicionando os indivíduos a se manterem acomodados nas suas posições sociais.
Isto é, a religião produz a justificativa para o pobre se manter na sua
condição de empregado trabalhador e honesto não protestando contra os
privilégios que o seu chefe possui por causa do almejado prêmio projetado para
o futuro depois da história...
É este Deus projetado pelo ser humano que o filme apresenta.
O herói Moisés é apresentado como um general descrente que é
confrontado por seu passado ligado a sua ascendência hebraica. Mesmo descrente
da fé de seus antepassados, hebreus ou egípcios, Moisés é levado para o deserto
onde conhece a tribo de pastores do deserto e enfim se assenta ao se casar com
Zípora. A figura de Deus não aparece no filme até então. Deus só entra em jogo
após Moisés ser acertado na cabeça por uma pedra quando sobe ao alto do Horebe
em busca das ovelhas desgarradas.

Volto na figura de Moisés que deixa o bordão, símbolo da
intervenção de Deus e da dependência do homem, substituindo-o pela espada, símbolo
do poder e da autonomia humana – poder pela violência que o homem pode
infringir. Moisés, antes das pragas treina os hebreus em táticas militares para
minar o poder dos egípcios e só para quando o Deus criança afirma aos berros
que irá colocar Faraó aos Seus pés de joelhos, momento em que começam as
pragas.
Enfim,
minha tese aqui é: “Toda história é história contemporânea” como lembrou Couto
citando Croce. E este filme ao tratar das questões da relação entre homem e Deus
tende a apresentá-las como um desequilíbrio mental daquele que crê. Como uma
fraqueza, um desvio da razão. O filme não afirma diretamente a inexistência de
Deus, a modernidade tardia não exige isso como exigia a modernidade em sua
busca da autonomia da razão. Por isso, dentro do mesmo filme a travessia do mar
vermelho pode ser inicialmente vista como um fenômeno natural explicável, pela
mudança da maré, e quase que em seguida como um grande milagre representado
pela onda gigante provocada pela repentina tempestade na “cabeceira” do mar.
O épico de Scott de três horas é um pouco cansativo pelo
excesso de ação. A costumização dos personagens é muito bem feita, tanto que as
vezes foge da naturalidade, principalmente os personagens egípcios. Senti a
falta de uma trilha sonora mais marcante apesar de que ela está lá, de uma
forma bem suave. Tem boas imagens, mas não é nada digno de prêmios. Gladiador ainda
é melhor neste gênero na produção de Scott. Mas, é um filme que vale a pena
ver.
Para mim, o filme merece nota 3,0 de 0,0 a 5,0.
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