sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

EXÔDO: ENTRE O PASTOR E O GENERAL



 A relação entre homem e Deus tende a apresentá-las como um desequilíbrio mental daquele que crê. Como uma fraqueza, um desvio da razão. O filme não afirma diretamente a inexistência de Deus, a modernidade tardia não exige isso como exigia a modernidade em sua busca da autonomia da razão.





Essa Semana fui assistir ao filme do Ridley Scott, Êxodo – Deuses e Reis. Gostaria de comentar um pouco sobre o que achei, como eu faço sempre.
Antes faz bem lembrar um pouco, de forma rápida alguns aspectos do livro base para o filme.

A primeira coisa que devemos lembrar é que o titulo do filme é homônimo ao do segundo livro do Antigo Testamento. O Livro de Êxodo, cuja autoria é tradicionalmente atribuída a Moisés, é possivelmente o mais importante do Antigo Testamento. Nele podemos observar o desenvolvimento da narrativa de como o povo de Israel estabelece o relacionamento com o Deus Único (Adonais, Javé o Eu Sou). Nessa narrativa o protagonista é Javé, mas o principal profeta, aquele que lidera o povo na fuga do Egito e que estabelece o código moral e jurídico para esse novo povo e por isso ganha tanto destaque quanto Javé é Moises.
Além disso, o livro de Êxodo pode ser considerado como um épico literário, repleto de prodígios sobrenaturais, pragas, calamidades ordenadas pelo Senhor (Adonai), mas também onde as paixões humanas, os medos e ambições ganham destaque. Nesse texto observamos uma escrita bíblica elíptica, poética, repetitiva muitas vezes lacunar. Javé surge na escrita como o Libertador do povo que ama, mas também como um Deus caprichoso, ciumento e muitas vezes, para a sensibilidade moderna, sanguinário e infantil. A sombra que as lacunas da narrativa apresenta deixa espaço para diferentes interpretações. O leitor atento muitas vezes é chamado a participar da leitura, interpretação do texto imbuindo-lhe sentidos que muitas vezes não estariam ali...
Penso que foi nessas brechas que se apoiou a dramatização hollywoodiana de Ridley Scott.

MOISÉS, DE PASTOR A GENERAL


Uma das coisas que mais me chamaram a atenção neste filme foi a transformação do personagem Moisés. Para mim, talvez devido a influência da animação Príncipe do Egito, o Moisés que volta ao Egito, chamado por Deus, é o pastor, alquebrado pelo medo e pelo drama de ter que fugir da corte do faraó, pelos anos de pastoreio no deserto. Um Moisés com uma perspectiva de vida dos pastores de Midiã e assombrado pela epifânia do Sagrado de Javé (Rudolfo Otto) na sarça ardente. Enfim, um homem humilhado e submisso. Um pastor com pouca disposição belicosa e com um profundo respeito pela cultura que tinha deixado para trás.
Moisés interpretado por 
O filme apresenta a visão de um Moisés, interpretado por Christian Bale, criado como príncipe na corte do faraó. A ênfase neste filme, como na animação, é na rivalidade entre Moisés e o príncipe Ramsés, interpretado por Joel Edgerton, herdeiro legítimo ao trono. Vale lembrar que a disputa entre os “irmãos” é algo próprio das produções hollywoodianas, mas não está presente no texto bíblico. Se lembrarmos dos filmes predecessores ao que agora discutimos vamos nos lembrar de: Os Dez Mandamentos (1956), de Cecil B. DeMille, nesse o diretor introduziu uma disputa entre os dois grandes homens do Egito pelo amor de Nefretiri. Na animação da Disney o drama entre os quase irmãos se dá em torno da fome de poder e da responsabilidade das ações de cada um.
O romance é suprimido neste novo filme. Como na animação o romance é introduzido de forma sutil através da relação entre Moisés e Zípora, interpretada por Maria Valverde, mas de forma menos melosa e condizente a cultura burguesa contemporânea, ou seja, descolando as relações do período histórico das relações entre homem e mulher no século 13 a. C.
Anyway. O novo filme apresenta um Moisés “porradeiro”. É o que o jornalista José Geraldo Couto chamou de “infantilização bélica dos filmes de ação”. O jornalista, acertou certeiramente ao dizer que o Moisés apresenta no filme uma transformação de Moisés num “super-herói de força descomunal e extremas habilidades marciais”. Além disso é mantida a tradição do herói bonito e vigoroso seguindo aos padrões estéticos de beleza e virilidade estados unidenses contemporâneo.
Como eu disse no inicio, eu estava acostumado a figura de Moisés como um velho barbudo e com o corpo já indo “ladeira abaixo”, se apoiando no cajado e completamente dependente de seu Deus por causa disso. Mas, essa representação fere a sensibilidade dos públicos de hoje em dia, sedentos pela ação frenética e pela violência sem sentido dos vídeo games e efeitos especiais. Acho que isto vai de encontro com a critica de Bauman quando fala que a cultura contemporânea é ávida por beleza que pode produzir satisfação instantânea. Talvez se adéqüe também a representação de Deus no filme.
Scott renunciou tanto a representação abstrata de Deus em meio a sarça ardente, onde a figura de Deus não aparece em nome da ênfase no seu poder e glória que produzem no homem que se encontra com Deus a sensação de finitude e dependência. Também renunciou a figura do Deus Paterno, velho, com longa barba e que foi figurativo do Ocidente por séculos. Representação que evocava a tradição, que nos nossos dias é automaticamente associada com a castração do desejo individual. Em lugar disso o filme apresentou Deus como uma criança geniosa e cruel. Fica aí a insinuação do que o diretor pensa sobre esse Deus... (risos).

DEUS NA CULTURA CONTEMPORANEA


“Deus está morto”. Foi esse o grito da filosofia moderna para a tradição religiosa Ocidental do século 19. Grito que ecoa até nós, que não deixamos de ser religiosos, pelo contrário. Mas que abandonamos vários aspectos da fé pré-moderna em nome dos ideais de conforto, satisfação, felicidade e prestígio. Manter a figura de Deus nessa cultura foi possível somente com uma acomodação do conteúdo tradicional as novas estratégias econômicas e estilos de vida no Ocidente. Essa reinterpretação da figura de Deus foi feita na filosofia e na psicanálise sobretudo.
Deus foi interpretado como uma projeção do indivíduo carente devido as suas condições históricas. Quer dizer, numa sociedade técnica, onde a desconfiança e a competitividade crescem e a afetividade e os laços de amizade e familiares perdem significância a figura de Deus acaba aparecendo como o personagem capaz de suprir essas necessidades. Outra interpretação é a de que Deus, ou a religião, seja uma narrativa produzida a partir das classes sociais privilegiadas. Uma narrativa que é capaz de estabilizar a estrutura social condicionando os indivíduos a se manterem acomodados nas suas posições sociais. Isto é, a religião produz a justificativa para o pobre se manter na sua condição de empregado trabalhador e honesto não protestando contra os privilégios que o seu chefe possui por causa do almejado prêmio projetado para o futuro depois da história...
É este Deus projetado pelo ser humano que o filme apresenta.
O herói Moisés é apresentado como um general descrente que é confrontado por seu passado ligado a sua ascendência hebraica. Mesmo descrente da fé de seus antepassados, hebreus ou egípcios, Moisés é levado para o deserto onde conhece a tribo de pastores do deserto e enfim se assenta ao se casar com Zípora. A figura de Deus não aparece no filme até então. Deus só entra em jogo após Moisés ser acertado na cabeça por uma pedra quando sobe ao alto do Horebe em busca das ovelhas desgarradas.
Uma mente mais crédula e fervorosa poderia interpretar o filme como que inspirado pela narrativa bíblica onde todos os eventos são embalados pelo cuidado de Deus sobre a história. Eu, porém, penso que o diretor quis inserir aquela perspectiva ateia ou agnóstica de história onde Deus não passa de uma projeção humana. Digo isso não baseado apenas no fato de que a figura de Deus aparece apenas após o acidente de Moisés. Mas, sobretudo, porque Moisés é sempre visto pelo personagem Josué, interpretado por Aaron Paul, conversando com o vento (quando na narrativa bíblica é dito que quando Moisés tinha conferências com Deus via-se no monte fumaça, chamas, luz além de um forte sentimento de terror). Outro fator é a apresentação da narrativa das pragas que também são “naturalizadas” ou “desdivinizadas” e explicadas no filme.
Volto na figura de Moisés que deixa o bordão, símbolo da intervenção de Deus e da dependência do homem, substituindo-o pela espada, símbolo do poder e da autonomia humana – poder pela violência que o homem pode infringir. Moisés, antes das pragas treina os hebreus em táticas militares para minar o poder dos egípcios e só para quando o Deus criança afirma aos berros que irá colocar Faraó aos Seus pés de joelhos, momento em que começam as pragas.

Enfim, minha tese aqui é: “Toda história é história contemporânea” como lembrou Couto citando Croce. E este filme ao tratar das questões da relação entre homem e Deus tende a apresentá-las como um desequilíbrio mental daquele que crê. Como uma fraqueza, um desvio da razão. O filme não afirma diretamente a inexistência de Deus, a modernidade tardia não exige isso como exigia a modernidade em sua busca da autonomia da razão. Por isso, dentro do mesmo filme a travessia do mar vermelho pode ser inicialmente vista como um fenômeno natural explicável, pela mudança da maré, e quase que em seguida como um grande milagre representado pela onda gigante provocada pela repentina tempestade na “cabeceira” do mar.

O épico de Scott de três horas é um pouco cansativo pelo excesso de ação. A costumização dos personagens é muito bem feita, tanto que as vezes foge da naturalidade, principalmente os personagens egípcios. Senti a falta de uma trilha sonora mais marcante apesar de que ela está lá, de uma forma bem suave. Tem boas imagens, mas não é nada digno de prêmios. Gladiador ainda é melhor neste gênero na produção de Scott. Mas, é um filme que vale a pena ver.
Para mim, o filme merece nota 3,0 de 0,0 a 5,0.




Nenhum comentário:

Postar um comentário

Estudos Anticoloniais, Pós-Coloniais, Decoloniais, Subalternos e Epistemologias do Sul

Recebi esta lista no whatsapp, enviada por uma amiga. Reposto o texto na integra para quem interessar começar a se aprofundar no tema. ...