segunda-feira, 20 de abril de 2015

Anjos Rebeldes e a Estrutura de Dominação da Sociedade Irreflexíva


Neste fim de semana revi um filme que havia assistido há um tempo atrás. Reescrevi o comentário sobre ele. Espero que gostem. O nome do filme em português é Anjos Rebeldes, Iron Jawed Angels (2004) o original em inglês.

ELENCO






O filme se passa no período a partir de 1912. Esse filme é estrelado pela já conhecida Hilary Swank, que ficou muito conhecida ao contracenar e ser dirigida por Eastwood em Menina de Ouro (2004), mas que tem outros sucessos no curriculo como Meninos não Choram (1999), Dalia Negra (2006) e o recente P. S. Eu te Amo (2007) em que contracena com Gerard Butler.
No drama de duas horas produzido pela HBO Films, dirigido por Katja von Garnie e co-estrelado por Margo Martindale , Anjelica Huston, Frances O'Connor, Lois Smith e Patrick Dempsey (Ben Weissman) Iron Jawed Angels Swank esta primorosa no papel da quaker feminista que junto a amiga Lucy Burns (Frances O'Connor) vai encontrar a líder reverenda Anna Howard Shaw (Lois Smith), que preside a Associação Nacional das Mulheres Sufragistas e tem Carrie Chapman Catt (Anjelica Huston).


SINOPSE


Alice, personagem de Swank, discorda da postura conservadora de Anna e pensa haver modos mais aguerridos de conseguir a aprovação da ementa que permite que todas as mulheres americanas votem e com isso organiza, não sem resistência, uma passeata em Washington D. C. no mesmo dia da posse do presidente Woodrow Wilson (Bob Gunton). 
Alice torna-se chefe das comitê da ANAMS em Washington, mas terá que arrumar fundos sozinha para fazer a passeata. Junto à Lucy, Alice organiza o comitê e conseguem apoio de algumas trabalhadoras de uma fábrica onde conseguem o apoio de Mabel Vernon (Brooke Smith) também se junta a elas e Ida Wells-Barnett (Adilah Barnes), uma negra de Chicago, aparece para dizer que marchará na passeata, mas não aceitará a idéia de que as negras fiquem na parada em separado, atrás.

É muito interessante a discussão que se segue, porque debate sobre a comodidade em que o movimento feminista inicialmente adotou relegando as negras à uma postura de sujeição política que refletia a sujeição imposta às mulheres pelos homens. A personagem de Swank é colocada em uma situação de refletir sobre a reprodução da dominação que até aquele momento estava invisibilizada sob o discurso libertacionista que produziam, mas que omitia a evidente situação de comodidade para elas. Porém, vou falar sobre isso mais adiante. 

Alice e companheiras, então comparecem a um encontro social com a finalidade de levantar fundos para a passeata e para o comitê, ali ela, Alice, conhece Ben Weissman (Patrick Dempsey), que trabalha como desenhista no Washington Post, e Inez Millholland (Julia Ormond), uma advogada trabalhista que tem ideias que se afinam bem com as de Alice. Inez é convidada a participar da passeata personificando uma guerreira. No dia da passeata muitas pessoas foram aplaudir ou protestar, enquanto Wilson era praticamente ignorado ao chegar na capital. Entretanto na parada o clima era cada vez mais tenso, pois os que protestavam se mostravam agressivos. A polícia "se distrai" e deixa os insatisfeitos invadirem a pista, para agredir quem estava na passeata. Isto resulta em 100 feridos e enquanto o conservadorismo de Carrie critica o que aconteceu, Alice e suas amigas encaram como uma vitória, pois a publicidade foi imensa e os jornais disseram que a culpa do tumulto foi negligência policial, com o Post exigindo uma investigação. Assim, antes que as feridas se curem, uma delegação foi se encontrar com Wilson, que foi evasivo sobre o voto para as mulheres, pois sabe que Anna Shaw não o pressionará. Elas então adotam um estratégia mais dinâmica, mas o que as espera seriam incapazes de imaginar.
Montam piquete na porta do presidente Wilson o que é interpretado como um esforço antipatriótico, posto que os Estados Unidos acabaram de declarar seu envolvimento com a guerra e as feministas são uma a uma presas, até que finalmente e sob protesto das companheiras a própria Alice é presa. 
Na cadeia sob tortura, Alice decide-se por uma postura radical de protesto para chamar a atenção da imprensa, que acompanhava através de Ben e das autoridades através do senador Thomas Leighton (Joseph Adams), que tinha sua mulher Emily (Molly Parker) presa como uma das feministas, o martírio da líder feminista e das suas companheiras.
O esforço leva Alice à beira da morte. Mas com isso ela consegue promover a comoção que gera a pressão para a aprovação do voto feminino universal.


COMENTÁRIOS


Anjos Rebeldes é um filme forte. Tem ritmo, uma fotografia excelente, interpretações sóbrias e uma trilha sonora equilibrada e que dá bem o clima.
Mas o que mais chamou minha atenção foi que o filme consegue transmitir com sutileza que por traz de uma situação de dominação existe sempre uma cultura da não reflexividade. No caso de Iron Jawed Angels, tal cultura é promovida pela cultura patriarcal, a postura do senador Thomas Leighton, por exemplo, grita o esteriótipo dessa cultura quando ele condena a esposa e que brada que lugar de mulher é em casa cuidando das crianças ou quando se nega a visitar a esposa na cadeia... 


REFLEXÃO


A modernidade bradou contra os paradigmas tradicionais em seu empreendimento libertacionista e promoveu o "esclarecimento" dos homens e das mulheres destas amarras que os prendiam e impediam uma existência de igualdade, que fosse baseada nos méritos do indivíduo em sim. Ao fazê-lo iniciou-se um processo de individualização que permitiu o surgimento de movimentos como o feminista ilustrado no filme acima comentado, mas a ausência de direção assumida a partir de então nos levou para outro extremo, um pólo antagônico aos ideais de valorização do ser humano idealizados pelo movimento do iluminismo.
A este respeito também podemos ressaltar o filme Idiocracia que ressalta que em nossos dias predomina uma "filosofia bigbrotheriana do vamos curtir" donde a sociedade produtora e reprodutora desse ethos social considera a sabedoria uma idiotice e venera uma cultura do prazer e esta viciada no prazer. Um artigo escrito por Madaleno ressalta:



"A alemã Hannah Arendt, há algumas décadas, preocupou-se com esse lugar entre o passado e futuro ao qual chamamos presente. Para ela, o desinteresse pelo passado (e por valores tradicionais que sustentaram as relações humanas durante séculos) tornou o futuro incerto, criando um senso de desorientação no presente. Para o pensador polonês Zygmunt Bauman, na modernidade líquida em que vivemos (onde os ideais e valores que predominaram na modernidade sólida da fé na ciência escoam pelo ralo) não há certezas quanto ao futuro e o medo predomina na subjetividade das pessoas. Neste mundo, desenvolvemos uma persistente intolerância a tudo que nos entedie. Com o controle da TV ou o mouse à mão, nos “divorciamos” rapidamente de tudo que não desperte o nosso interesse imediato. E  o que desperta interesse? O critério-chave adotado pelo homem contemporâneo tem sido: interessa apenas aquilo (e aquele) que possa produzir resultados e que viabilize a autossatisfação. Trata-se de uma sociedade infantilizada, incapaz de suportar a espera e de atender à exigência de esforço que é parte de todo processo de amadurecimento. "


Assim o psicologo completa falando sobre o compromisso da mídia contemporânea em alimentar de entretenimento irreflexívo um público cada vez maior de falantes produtores de uma demanda hedônica como forma-de-existir-no-mundo. Assim ele reflete:



"A ordem do momento é falar o que se pensa e se sente. Todavia, aquilo que tanto se quer dizer termina por mostrar, frequentemente, a superficialidade do pensamento idiotizado, ou seja, centrado no próprio indivíduo. Ouvir tornou-se uma tarefa desinteressante, ignorada e, por vezes, ridicularizada. Logo, o discernimento que leva a saúde (em seu sentido mais amplo, ou seja, biopsicossocial), tornou-se raríssimo".

E conclui



"Na sociedade idiotizada dos falantes sem disposição para ouvir e ansiosos por falar, a distância cognitiva e de autoridade entre crianças e adultos tem se tornado cada vez menor".


Os desdobramentos sociais do movimento de insurreição à toda Tradição pretendido pela modernidade ocidental, conforme é analisado por Arendt nos trouxe ao extremo oposto e hoje convivemos com a demência da infantilidade de adultos que falam o que vem a cabeça e a todo momento negam na prática aquilo que professam em discurso e fazem isso em nome de uma moral da comodidade e de uma ética do prazer.

O filme desencadeou esta reflexão porque assisti ele em concomitancia à dois eventos lamentáveis ocorridos na faculdade onde homens supostamente esclarecidos manifestaram a estupidez da agressão contra mulheres em nome de detalhes estéticos e da pura afirmação da autoridade masculina.
Tão absurda quanto essa reação irreflexíva que, a priori, ecoa um tradicionalismo retrogrado é a atitude de conformismo daqueles que a presenciaram sem manifestar indignação alguma clara e declaradamente reproduzindo uma postura de acomodação em nome da busca por aceitação e pelo prazer. Se se envolver significa militar políticamente e com isso negar ou pelo menos adiar a possibilidade de satisfazer as pulsões que motivam, de forma subconsciente nossas ações - o eros é o critério de tomada de decisões na modernidade líquida - então preferimos nos furtar a esse exercício.
Voltando ao filme, Alice Paul lutou contra a irreflexívidade asfixiante do machismo de seus tempos, mas hoje não temos heróis ou heroínas que lutem contra a irreflixívidade infantilizadora de nossos dias, pois na sociedade idiotizada, é mais fácil dar de ombros e considerar hilária e inapropriada a ação de tentar viver diligentemente lendo nas entrelinhas as mensagens de uma forma de viver despreocupada e descompromissada da sociedade hedônica que oprime a todos, hoje as mulheres, amanhã, quem sabe, você (?). E assim, denunciamos com nossa prática irreflexíva a corrosão do sistema de valores, bem como corroboramos a tese de Arendt de que vivemos enclausurados em um presente sem passado, onde um filme que nos lembra as grandes lutas pela libertação da dominação masculina não passa de um entretenimento para divertir, assim como o dia das mulheres não passa de uma data comercial, e que o futuro não possui sentido ou valor pois não é uma possíbilidade a ser pensada, mas de onde emana a desconfiança (o medo como acentua Bauman) de que nada seremos. Para viver num mundo assim, somente sendo idiotas que vivem aprisionados pelas pulsões externas e internas que os pressionam e que os impelem, ou como loucos hilários que sobre tudo refletem e protestam, mas que por ninguém podem ser atendidos...
Este é o triste fim que levou as lutas das mulheres por seu lugar na sociedade, o direito de votar está aí. Mais firme do que nunca, mas perdeu seu sentido posto que não há ideologias, ou melhor, não há lutas a serem travadas no campo público a não ser a luta pelo próprio bem-estar de cada um onde cada um esta cada vez mais sozinho.

Depois do filme conversei com minha namorada, não foi "d. r." mas uma edificante reflexão sobre o que devemos fazer para que o sentido de nossa tradição não se perca na ausência de sentido da fluidez desse mundo. Esse texto é um começo.

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