Dessubjetivação das interações: suas consequências psicológicas e políticas. Uma analise do filme Wall-e
SINOPSE DO FILME
Após entulhar a Terra de lixo e poluir a atmosfera com gases tóxicos, a humanidade deixou o planeta e passou a viver em uma gigantesca nave. O plano era que o retiro durasse alguns poucos anos, com robôs sendo deixados para limpar o planeta. Wall-E é o último destes robôs, que se mantém em funcionamento graças ao auto-conserto de suas peças. Sua vida consiste em compactar o lixo existente no planeta, que forma torres maiores que arranha-céus, e colecionar objetos curiosos que encontra ao realizar seu trabalho. Até que um dia surge repentinamente uma nave, que traz um novo e moderno robô: Eva. A princípio curioso, Wall-E logo se apaixona pela recém-chegada.
Tese do Filme:
Quero defender
que a tese do filme Wall-E seja a de que o aumento na complexidade social seja
a causa objetiva do grau de incerteza e que isto, por sua vez, produza a
desubjetivação∕despersonalização nos relacionamentos como forma de redução da
ansiedade existencial.
Subtese do filme:
A aprendizagem
de alguns aspectos da tradição pode descomplexificar a sociedade, diminuindo o
grau de incerteza e “resubjetivando”∕”repersonalizando” as relações entre os
indivíduos.
Sinopse do Filme:
Dessubjetivação das interações: causas sociais.
Em Wall-E vemos uma sociedade
erigida a partir da prática do consumo como critério legítimo de tomada de
decisões, critério esse que atinge nível político ao ponto de que conglomerados
comerciais privados passam a assumir e a determinar as escolhas da sociedade.
Isto em nível político∕coletivo, mas também na esfera pessoal.
Despersonalização significa a
incapacidade de “enxergar” as necessidades legítimas do Outro e agir para
supri-las. Os seres humanos no espaço padecem deste processo. Exemplo, quando
Johnn cai de sua cadeira, no meio do transito, nenhum outro ser humano se
importa com o fato. Wall-E, no entanto, se prontifica imediatamente a
auxilia-lo, mesmo sob o risco de perder de vista sua amada, que motivava a sua
demanda.
Estes seres humanos perderam a
capacidade de discernir sobre bem e mal, eles carecem de que robôs lhes deem
essa noção e se prendem aos protocolos estabelecidos pelo sistema.
A crítica do filme nesse sentido
converge para a teoria política da filosofa alemã Hannah Arendt sobre a
colonização da esfera publica por interesse privados. Critica posteriormente
assimilada e desenvolvida pelo filosofo social Jurgen Habermas.
Arendt e Habermas consideram a
esfera pública aos moldes da hagora (ἀγορα)
grega, isto é, a praça pública onde as discussões sobre as necessidades da
cidade surgiam e eram discutidas pelos cidadãos (cf. Arendt, 2009, p. 60). Na
esfera pública são tematizados os interesses coletivos legítimos que devem ser
transformados em políticas publicas para o bem da coletividade (cf. Habermas,
2002, p. 138).
Segundo esses autores, na
sociedade do consumo a possibilidade de uma esfera pública ativa e
representativa é nula, posto que numa sociedade como essa a colonização dos
temas de discussão pública é feita em função de interesses privados∕indivíduais∕egoístas
e motivados pela esfera econômica.
Esta realidade é apresentada em
vários momentos do filme, mas pode se destacar as cenas iniciais do filme,
quando Wall-E passeia entre os detritos deixados para trás, na terra. Nesse
momento vemos que o tornou a terra o repositório de lixo abandonada pelos
humanos foi exatamente o que a critica de Arendt e Habermas fizeram. Isto é, a
exaltação da cultura do consumo e a delegação das decisões políticas aos
conglomerados financeiros – a Buy n Large no filme representa estes
conglomerados. A exaltação da cultura do consumo é um indicativo do processo
onde a síndrome da gratificação imediata passa a se tornar uma estrutura de
pensamento que determina a forma de agir e de pensar dos indivíduos.
Essa síndrome é causada, de
forma objetiva, pelo medo de fazer escolhas erradas. O medo, por sua vez,
segundo Pires (2012), é causado pela pluralidade de opções aliada à falta de
critérios que dão sentido para as escolhas – processo de secularização e de
desencantamento do mundo (Weber, 2004) – tornando o indivíduo o único
responsável pelas escolhas que faz (Bauman, 2008).
Erich Fromm identifica esta
síndrome ao fortalecimento do egoísmo como parâmetro legítimo para as
interações modernas. Para o autor este egoísmo é uma forma de proteção
psicológica utilizada pelo indivíduo para se proteger da incerteza das escolhas
certas a serem feitas no cotidiano moderno que foi destituído de referenciais
de certo e errado (cf. Fromm, 1983, p,90-113)
Além disso, o filme propõe uma
inversão: nele os seres humanos são os robôs.
Os robôs antropomorfoseiam
características tipicamente humanas nas suas interações. Características como:
medo, raiva, paixão, aprendizagem aparecem constantemente nas relações que os
robôs estabelecem entre eles e com o mundo que os cercam.

Um segundo aspecto dessa
antropomorfesização é a metáfora implícita do filme. O ser humano como um robô.
Significa a assimilação da cultura do trabalho como característica identitaria
basilar do homem moderno.
O robô se identifica por sua
diretriz. Ele é aquilo que ele faz. A cultura do trabalho, contemporaneamente,
também nos caracteriza. Este é um aspecto tipicamente moderno, herdado por nós,
neomodernos. Nos tornamos nossas profissões, seres sem passado ou sem história
que ultrapasse o que é realizado na atividade profissional.
O trabalho tematiza nossas
conversas, nossa vida se organiza em função de um bom desempenho no trabalho,
quer dizer, o tempo de descanso está em função da necessidade de se voltar ao
trabalho e exibir uma boa produtividade. As conversas com amigos giram em torno
do que é feito no trabalho, ou do que terá que ser feito. O trabalho ganha
status de atividade fundamental da vida humana, se confundindo com outras áreas
da vida pessoal do indivíduo.
O trabalho se torna importante
na modernidade como forma substitutiva de instituições sociais que davam
sentido para a vida, como a religião. Isto porque o trabalho estabelece uma
rotina e uma função para os trabalhadores – robôs agem segundo uma diretriz,
quer dizer, eles tem uma função a desempenhar, função que é repetida
monotonamente todos os dias.
Numa sociedade complexa o nível
de incerteza cresce em função do número de possibilidades de escolhas a serem
feitas e em função também da diminuição da importância de instituições sociais
que dão sentido às ações dos indivíduos, como religião, ética e família. Em
tais contextos é possível falar do trabalho como uma compulsão. Que tem
finalidade nela mesma. Os robôs do filme, todos eles, apresentam comportamento neurótico
compulsivo em realizar suas tarefas.
Apesar de apresentar este
comportamento também, Wall-E se distingue dos demais. Por que?
Wall-E por algum motivo se
desliga da “realidade robótica”. Ele desenvolve uma personalidade distinta.
Gosto por colecionar artefatos antigos relacionados à cultura terráquea deixada
para trás.
Isto nada tem a ver com desejo
de transgredir, como explicaria a teoria freudiana com seus mitos fálicos de
explicação das origens instituais do comportamento e da estrutura cognitiva do
ser humano.
Tradição e formação da consciência.
Quero identificar isso com o
desenvolvimento do gosto pela tradição. Wall-E aprende a amar, a ter honra, a
ser solidário. Ele não faz isso em atitude de insurreição aos seus criadores,
Wall-E mantém o senso de cuidado e de expectativa de regresso dos seus
criadores. O filme começa com a música “out
there” (lá fora) que é um indicativo da esperança de encontrar alguém
perdido num lugar fora e distante.
Wall-E aprende a ser solidário e
a dar valor ao cuidado. Ele aprende a valorizar o Outro. Suas ações são de
cuidado, primeiro com a barata, depois com EVA, por fim com os seres humanos –
ato sacrificial para garantir a possibilidade de regresso para a terra.
É este aprendizado, esta
assimilação dos valores tradicionais de uma cultura humana há muito perdida que
ressignifica a função diretriz de Wall-E, que o torna singular ante os outros
robôs. Que o personaliza e que torna possível a subjetivação das suas relações.
Wall-E também fomenta ideais
românticos – que o leva a se apaixonar pela beleza impar de EVA. Mas, deve-se
notar que a concepção de relacionamento de Wall-E com EVA também é distinta de
uma concepção individualista de amor. O amor erogenizado da versão freudiana
não aparece nessa relação. Antes a concepção de amor representada na atitude de
Wall-E, é constituída por um tipo de afetividade – ilustrada pela canção: La vie em rose, na belíssima
interpretação de Louis Armstrong (a canção original é de Edit Piaf) – e
traduzida na prática, pela atenção que o pequeno robô dispensa à viajante das
galáxias e ao serviço e cuidados que lhe dispensa também.
Estas características
distintivas de Wall-E são apreendidas pelo robô com a assimilação da tradição
cultural. Esta é responsável por diminuir, para o Wall-E o nível da
complexidade social e consequentemente da ansiedade garantindo-lhe uma direção
estável de quais as decisões ele deveria tomar.
Decisões individuais que chegam
ao nível político. O robô lixeiro que inicia sua viagem ao espaço em busca do
seu ideal romântico consegue relativizar esse objetivo em função do bem estar
coletivo da humanidade, ao fazer o sacrifício desafiando Auto o sistema de
controle da nave espacial. E em seguida se colocando em risco para segurar a
plataforma onde a planta deveria ser colocada para iniciar o regresso para a
terra.
Essa restituição da capacidade
de discernir sobre o bem e o mal a partir da aprendizagem da tradição também é
ilustrada no processo em que o capitão da nave é transformado.
O capitão é um homem levado pelo
sistema, como os outros seres humanos naquela nave o haviam sido há setecentos
anos. Quando EVA lhe entrega a planta e a possibilidade de voltar para casa é
despertada no capitão a crença sobre a continuidade da rotina é quebrada.
Quando o capitão entra em
contato com um pouco de terra deixada por Wall-E e passa a estudar a tradição
da cultura e história humana é despertado nele uma nova forma de consciência. A
consciência de quem ele é, do que deve fazer e da sua responsabilidade real
como capitão.
Baseado nessa nova consciência
ele percebe, ao olhar para as fotos dos capitães que o precederam, uma tradição
de manipulação e decide agir para restituir a liberdade das escolhas aos
humanos. Ele faz isso indo contra o comodismo consumista heteroimposto pelo
sistema representado pelo robô Auto.
Tradição e aprendizagem: Possibilidades de formação da consciência e de
engajamento político.
A subtese do filme é de que a
tradição, ao contrário da critica freudiana, pode estabilizar as ações humanas dando
a estes segurança ao apontarem possibilidades de direção para as suas ações.
Wall-E e o capitão da nave são os representantes mais bem acabados dessa
subtese no filme.
Tal subtese se pauta, ou se
aproxima, da critica marcusiana a cultura contemporânea. Em, O homem
unidimensional, o filosofo social Hebert Marcuse teoriza sobre a necessidade do
conflito para a estruturação do aparelho cognitivo humano. Marcuse parte da
leitura freudiana onde a estrutura cognitiva do ser humano é construída a
partir da relação dinâmica e conflitiva entre ID e Superego, que produz o ego.
O principio da realidade que limita e cerceia o desejo humano, segundo o autor,
seria um “mal necessário” para o desenvolvimento humano.
A partir dessa estrutura castradora,
presente na tradição e na cultura humana é que o indivíduo aprende a lidar com
perdas e a se preparar para desafios que lhes são impostos na esfera publica.
Marcuse critica a estrutura da
sociedade moderna que diminui o valor das instituições formadoras de sentido e
determinantes das ações. Segundo ele, essa secularização da realidade moderna é
responsável pela extinção do principio da realidade e causadora da
dessublimação institucionalizada, que segundo o autor é um fator vital na
formação da personalidade autoritária presente na sociedade contemporânea (cf.
Marcuse, 1973, p. 84). O autor explica que quanto maior a liberdade para o
indivíduo tanto maior a contração das necessidades instintivas, isto é,
individualiza mais e diminui-se a possibilidade de resistência.
Para ele, a civilização
industrial desenvolvida opera com um grau maior de liberdade sexual. É uma das
realizações dessa sociedade, possibilitada pela higienização e pela otimização
do trabalho e seu ambiente. A indevassabilidade dos edifícios e consequente
publicização da vida privada também contam como variáveis da “nova socialização”
que complementa a deserotização do ambiente. O sexo é integrado ao trabalho e
às relações publicas, sendo assim tornado mais suscetível à satisfação (controlada).

O autor procura indicar que o
principio da sociedade capitalista moderna se assenta nessa dessublimação
institucionalizada. E nesse sentido, a satisfação gera um estilo de vida que
produz a submissão e enfraquece a racionalidade de protesto. O âmbito da
satisfação socialmente permissível é ampliado, mas o principio do prazer é
reduzido. A ampliação da satisfação socialmente concedida proporciona a perda
da consciência em razão das liberdades satisfatórias concedidas por uma
sociedade sem liberdade. Uma sociedade que a sua liberdade é a de escolher o
que lhe for determinado. Isto favorece uma “consciência feliz” que facilita a
aceitação dos malefícios dessa sociedade. A função da dessublimação na
sociedade industrial é a produção do conformismo (cf. Marcuse, 1973, p. 85).
Ora, essa é exatamente a
descrição da estrutura social em que os seres humanos do filme Wall-E estão
enredados. Não apenas na nave, mas muito antes de partir para o espaço estes
humanos já estavam inseridos na estrutura social onde o critério para tomada de
decisões era o estilo de vida hedônico, como foi dito no inicio.
A restituição dos sentidos
tradicionais ao capitão é o que possibilita a este a tomada de consciência e a
possibilidade de julgar se Auto estava certo ou errado, e então, decidir o que
fazer para o bem coletivo, uma ação individual, mas também política.
Envolvimento: a decisão pela experiência como alternativa para a cura.
Mas ainda há outra tese presente
no filme. A de que a mudança social não pode ser apreendida apenas teoricamente
ela deve ser experimentada nas ações em direção ao outro.
EVA só é despertada do seu
entorpecimento para o mundo do trabalho quando o capitão instala nela um projetor
holográfico que projeta as imagens de sua câmera de segurança. Ali ela entra em
contato com o cuidado que Wall-E dispensou a ela, mesmo quando ela não podia
ver esse cuidado. É então que EVA percebe a alternativa para sua forma de vida
que é proposta na performance prática de Wall-E.


A cena final, onde a
subjetivação∕personalização das relações e do próprio indivíduo é devolvida a
Wall-E pelo “beijo” de EVA também indica a necessidade desse contato
experiencial para a “libertação” da despersonalização que Wall-E tinha passado.
Essa cena dialoga com a cena de
outro filme, a saber, Gênio Indomável. Na cena na conversa no parque entre o
terapeuta Sean e o problemático paciente Will Hunting o terapeuta alerta. O
conhecimento teórico é capaz apenas de produzir mais psicopatologias e espírito
de competitividade. Para a humanização de um relacionamento é necessário que
haja imersão na experiência, que haja interesse de ambas as partes e abertura.
Que haja envolvimento e experiência. Relações superficiais como as criadas no
mundo do trabalho e consumo só podem produzir mais experiências superficiais e
destituídas de sentido, aprofundando o problema já existente.
Wall-E é um conto infantil que
faz uma critica inteligente a estrutura das relações contemporâneas baseadas na
segurança pueril criada pelo mundo do trabalho, pela incerteza da falta de
referenciais de éticos (tradição) para tomada de decisões e que fala da
consequência subjetiva destas transformações contemporâneas, tanto quanto das
consequências macropolíticas que elas ganham.
Referencias:
ARENDT, Hannah. A tradição e a
época moderna. In: Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2009, p.
43-68.
BAUMAN, Zygmunt. Critica – privatizada
e desarmada. In: A sociedade individualizada. Vidas contadas e histórias
vividas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 129 – 141.
FROMM, Erich. Os dois aspectos da
liberdade para o homem moderno. In: O medo à liberdade. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1983, p. 90 – 113.
GIDDENS, Anthony. Modernidade e
identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
HABERMAS, Jürgen. A entrada na
pós-modernidade: Nietzsche como ponto de inflexão. In: O discurso filosófico da
modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 121-151.
MARCUSE, Hebert. A ideologia da
sociedade industrial. O homem unidimensional. Rio de Janeiro: Zahar editores,
1973.
PIRES, Anderson. A sociedade do
glamour, ética do consumismo e a ontologia da verdade. In: Revista brasileira
de psicoteologia. Disponível em: <>. Acessado em: 22-04-2013.
WEBER, Max. A ética protestante e
o espírito do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
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