segunda-feira, 20 de abril de 2015

Dessubjetivação das interações: suas consequências psicológicas e políticas. Uma analise do filme Wall-e









SINOPSE DO FILME

Após entulhar a Terra de lixo e poluir a atmosfera com gases tóxicos, a humanidade deixou o planeta e passou a viver em uma gigantesca nave. O plano era que o retiro durasse alguns poucos anos, com robôs sendo deixados para limpar o planeta. Wall-E é o último destes robôs, que se mantém em funcionamento graças ao auto-conserto de suas peças. Sua vida consiste em compactar o lixo existente no planeta, que forma torres maiores que arranha-céus, e colecionar objetos curiosos que encontra ao realizar seu trabalho. Até que um dia surge repentinamente uma nave, que traz um novo e moderno robô: Eva. A princípio curioso, Wall-E logo se apaixona pela recém-chegada.


Tese do Filme:

Quero defender que a tese do filme Wall-E seja a de que o aumento na complexidade social seja a causa objetiva do grau de incerteza e que isto, por sua vez, produza a desubjetivação∕despersonalização nos relacionamentos como forma de redução da ansiedade existencial.

Subtese do filme:

A aprendizagem de alguns aspectos da tradição pode descomplexificar a sociedade, diminuindo o grau de incerteza e “resubjetivando”∕”repersonalizando” as relações entre os indivíduos.

Sinopse do Filme:



Dessubjetivação das interações: causas sociais.


                Em Wall-E vemos uma sociedade erigida a partir da prática do consumo como critério legítimo de tomada de decisões, critério esse que atinge nível político ao ponto de que conglomerados comerciais privados passam a assumir e a determinar as escolhas da sociedade. Isto em nível político∕coletivo, mas também na esfera pessoal.
                Despersonalização significa a incapacidade de “enxergar” as necessidades legítimas do Outro e agir para supri-las. Os seres humanos no espaço padecem deste processo. Exemplo, quando Johnn cai de sua cadeira, no meio do transito, nenhum outro ser humano se importa com o fato. Wall-E, no entanto, se prontifica imediatamente a auxilia-lo, mesmo sob o risco de perder de vista sua amada, que motivava a sua demanda.
                Estes seres humanos perderam a capacidade de discernir sobre bem e mal, eles carecem de que robôs lhes deem essa noção e se prendem aos protocolos estabelecidos pelo sistema.
                A crítica do filme nesse sentido converge para a teoria política da filosofa alemã Hannah Arendt sobre a colonização da esfera publica por interesse privados. Critica posteriormente assimilada e desenvolvida pelo filosofo social Jurgen Habermas.
                Arendt e Habermas consideram a esfera pública aos moldes da hagora (ἀγορα) grega, isto é, a praça pública onde as discussões sobre as necessidades da cidade surgiam e eram discutidas pelos cidadãos (cf. Arendt, 2009, p. 60). Na esfera pública são tematizados os interesses coletivos legítimos que devem ser transformados em políticas publicas para o bem da coletividade (cf. Habermas, 2002, p. 138).
                Segundo esses autores, na sociedade do consumo a possibilidade de uma esfera pública ativa e representativa é nula, posto que numa sociedade como essa a colonização dos temas de discussão pública é feita em função de interesses privados∕indivíduais∕egoístas e motivados pela esfera econômica.
                Esta realidade é apresentada em vários momentos do filme, mas pode se destacar as cenas iniciais do filme, quando Wall-E passeia entre os detritos deixados para trás, na terra. Nesse momento vemos que o tornou a terra o repositório de lixo abandonada pelos humanos foi exatamente o que a critica de Arendt e Habermas fizeram. Isto é, a exaltação da cultura do consumo e a delegação das decisões políticas aos conglomerados financeiros – a Buy n Large no filme representa estes conglomerados. A exaltação da cultura do consumo é um indicativo do processo onde a síndrome da gratificação imediata passa a se tornar uma estrutura de pensamento que determina a forma de agir e de pensar dos indivíduos.
                Essa síndrome é causada, de forma objetiva, pelo medo de fazer escolhas erradas. O medo, por sua vez, segundo Pires (2012), é causado pela pluralidade de opções aliada à falta de critérios que dão sentido para as escolhas – processo de secularização e de desencantamento do mundo (Weber, 2004) – tornando o indivíduo o único responsável pelas escolhas que faz (Bauman, 2008).
                Erich Fromm identifica esta síndrome ao fortalecimento do egoísmo como parâmetro legítimo para as interações modernas. Para o autor este egoísmo é uma forma de proteção psicológica utilizada pelo indivíduo para se proteger da incerteza das escolhas certas a serem feitas no cotidiano moderno que foi destituído de referenciais de certo e errado (cf. Fromm, 1983, p,90-113)
                Além disso, o filme propõe uma inversão: nele os seres humanos são os robôs.
                Os robôs antropomorfoseiam características tipicamente humanas nas suas interações. Características como: medo, raiva, paixão, aprendizagem aparecem constantemente nas relações que os robôs estabelecem entre eles e com o mundo que os cercam.
                Exemplo disso, são os robôs Mo, robô de limpeza, compulsivo por limpar que persegue Wall-E pela nave, ele apresenta emoções como raiva, frustração e depois um nível baixo de afeto, mostrado no final do filme quando enfim consegue limpar Wall-E se torna amigo deste. O robô que fica preso do lado de fora da nave, quando EVA e Wall-E regressam de sua “dança” no espaço, mostra desespero por ter sido trancafiado de fora da nave. Os robôs com defeito que passam a seguir Wall-E, todos eles desenvolveram outros sentidos para viver as funções (diretrizes) que lhes eram atribuídas.
                Um segundo aspecto dessa antropomorfesização é a metáfora implícita do filme. O ser humano como um robô. Significa a assimilação da cultura do trabalho como característica identitaria basilar do homem moderno.
                O robô se identifica por sua diretriz. Ele é aquilo que ele faz. A cultura do trabalho, contemporaneamente, também nos caracteriza. Este é um aspecto tipicamente moderno, herdado por nós, neomodernos. Nos tornamos nossas profissões, seres sem passado ou sem história que ultrapasse o que é realizado na atividade profissional.
                O trabalho tematiza nossas conversas, nossa vida se organiza em função de um bom desempenho no trabalho, quer dizer, o tempo de descanso está em função da necessidade de se voltar ao trabalho e exibir uma boa produtividade. As conversas com amigos giram em torno do que é feito no trabalho, ou do que terá que ser feito. O trabalho ganha status de atividade fundamental da vida humana, se confundindo com outras áreas da vida pessoal do indivíduo.
                O trabalho se torna importante na modernidade como forma substitutiva de instituições sociais que davam sentido para a vida, como a religião. Isto porque o trabalho estabelece uma rotina e uma função para os trabalhadores – robôs agem segundo uma diretriz, quer dizer, eles tem uma função a desempenhar, função que é repetida monotonamente todos os dias.
                Numa sociedade complexa o nível de incerteza cresce em função do número de possibilidades de escolhas a serem feitas e em função também da diminuição da importância de instituições sociais que dão sentido às ações dos indivíduos, como religião, ética e família. Em tais contextos é possível falar do trabalho como uma compulsão. Que tem finalidade nela mesma. Os robôs do filme, todos eles, apresentam comportamento neurótico compulsivo em realizar suas tarefas.
                Apesar de apresentar este comportamento também, Wall-E se distingue dos demais. Por que?
                Wall-E por algum motivo se desliga da “realidade robótica”. Ele desenvolve uma personalidade distinta. Gosto por colecionar artefatos antigos relacionados à cultura terráquea deixada para trás.
                Isto nada tem a ver com desejo de transgredir, como explicaria a teoria freudiana com seus mitos fálicos de explicação das origens instituais do comportamento e da estrutura cognitiva do ser humano.

Tradição e formação da consciência.


                Quero identificar isso com o desenvolvimento do gosto pela tradição. Wall-E aprende a amar, a ter honra, a ser solidário. Ele não faz isso em atitude de insurreição aos seus criadores, Wall-E mantém o senso de cuidado e de expectativa de regresso dos seus criadores. O filme começa com a música “out there” (lá fora) que é um indicativo da esperança de encontrar alguém perdido num lugar fora e distante.
                Wall-E aprende a ser solidário e a dar valor ao cuidado. Ele aprende a valorizar o Outro. Suas ações são de cuidado, primeiro com a barata, depois com EVA, por fim com os seres humanos – ato sacrificial para garantir a possibilidade de regresso para a terra.
                É este aprendizado, esta assimilação dos valores tradicionais de uma cultura humana há muito perdida que ressignifica a função diretriz de Wall-E, que o torna singular ante os outros robôs. Que o personaliza e que torna possível a subjetivação das suas relações.
                Wall-E também fomenta ideais românticos – que o leva a se apaixonar pela beleza impar de EVA. Mas, deve-se notar que a concepção de relacionamento de Wall-E com EVA também é distinta de uma concepção individualista de amor. O amor erogenizado da versão freudiana não aparece nessa relação. Antes a concepção de amor representada na atitude de Wall-E, é constituída por um tipo de afetividade – ilustrada pela canção: La vie em rose, na belíssima interpretação de Louis Armstrong (a canção original é de Edit Piaf) – e traduzida na prática, pela atenção que o pequeno robô dispensa à viajante das galáxias e ao serviço e cuidados que lhe dispensa também.
                Estas características distintivas de Wall-E são apreendidas pelo robô com a assimilação da tradição cultural. Esta é responsável por diminuir, para o Wall-E o nível da complexidade social e consequentemente da ansiedade garantindo-lhe uma direção estável de quais as decisões ele deveria tomar.
                Decisões individuais que chegam ao nível político. O robô lixeiro que inicia sua viagem ao espaço em busca do seu ideal romântico consegue relativizar esse objetivo em função do bem estar coletivo da humanidade, ao fazer o sacrifício desafiando Auto o sistema de controle da nave espacial. E em seguida se colocando em risco para segurar a plataforma onde a planta deveria ser colocada para iniciar o regresso para a terra.
                Essa restituição da capacidade de discernir sobre o bem e o mal a partir da aprendizagem da tradição também é ilustrada no processo em que o capitão da nave é transformado.
                O capitão é um homem levado pelo sistema, como os outros seres humanos naquela nave o haviam sido há setecentos anos. Quando EVA lhe entrega a planta e a possibilidade de voltar para casa é despertada no capitão a crença sobre a continuidade da rotina é quebrada.
                Quando o capitão entra em contato com um pouco de terra deixada por Wall-E e passa a estudar a tradição da cultura e história humana é despertado nele uma nova forma de consciência. A consciência de quem ele é, do que deve fazer e da sua responsabilidade real como capitão.
                Baseado nessa nova consciência ele percebe, ao olhar para as fotos dos capitães que o precederam, uma tradição de manipulação e decide agir para restituir a liberdade das escolhas aos humanos. Ele faz isso indo contra o comodismo consumista heteroimposto pelo sistema representado pelo robô Auto.

Tradição e aprendizagem: Possibilidades de formação da consciência e de engajamento político.


                A subtese do filme é de que a tradição, ao contrário da critica freudiana, pode estabilizar as ações humanas dando a estes segurança ao apontarem possibilidades de direção para as suas ações. Wall-E e o capitão da nave são os representantes mais bem acabados dessa subtese no filme.
                Tal subtese se pauta, ou se aproxima, da critica marcusiana a cultura contemporânea. Em, O homem unidimensional, o filosofo social Hebert Marcuse teoriza sobre a necessidade do conflito para a estruturação do aparelho cognitivo humano. Marcuse parte da leitura freudiana onde a estrutura cognitiva do ser humano é construída a partir da relação dinâmica e conflitiva entre ID e Superego, que produz o ego. O principio da realidade que limita e cerceia o desejo humano, segundo o autor, seria um “mal necessário” para o desenvolvimento humano.
                A partir dessa estrutura castradora, presente na tradição e na cultura humana é que o indivíduo aprende a lidar com perdas e a se preparar para desafios que lhes são impostos na esfera publica.
                Marcuse critica a estrutura da sociedade moderna que diminui o valor das instituições formadoras de sentido e determinantes das ações. Segundo ele, essa secularização da realidade moderna é responsável pela extinção do principio da realidade e causadora da dessublimação institucionalizada, que segundo o autor é um fator vital na formação da personalidade autoritária presente na sociedade contemporânea (cf. Marcuse, 1973, p. 84). O autor explica que quanto maior a liberdade para o indivíduo tanto maior a contração das necessidades instintivas, isto é, individualiza mais e diminui-se a possibilidade de resistência.
                Para ele, a civilização industrial desenvolvida opera com um grau maior de liberdade sexual. É uma das realizações dessa sociedade, possibilitada pela higienização e pela otimização do trabalho e seu ambiente. A indevassabilidade dos edifícios e consequente publicização da vida privada também contam como variáveis da “nova socialização” que complementa a deserotização do ambiente. O sexo é integrado ao trabalho e às relações publicas, sendo assim tornado mais suscetível à satisfação (controlada).
                Essa mobilização e administração da libido pode ser a responsável por muito da submissão voluntária, da ausência de terror, da harmonia preestabelecida e aspirações socialmente necessários. A conquista tecnológica e política dos fatores transcendetes da existência humana afirma-se aqui na esfera instintiva, diz Marcuse.
                O autor procura indicar que o principio da sociedade capitalista moderna se assenta nessa dessublimação institucionalizada. E nesse sentido, a satisfação gera um estilo de vida que produz a submissão e enfraquece a racionalidade de protesto. O âmbito da satisfação socialmente permissível é ampliado, mas o principio do prazer é reduzido. A ampliação da satisfação socialmente concedida proporciona a perda da consciência em razão das liberdades satisfatórias concedidas por uma sociedade sem liberdade. Uma sociedade que a sua liberdade é a de escolher o que lhe for determinado. Isto favorece uma “consciência feliz” que facilita a aceitação dos malefícios dessa sociedade. A função da dessublimação na sociedade industrial é a produção do conformismo (cf. Marcuse, 1973, p. 85).
                Ora, essa é exatamente a descrição da estrutura social em que os seres humanos do filme Wall-E estão enredados. Não apenas na nave, mas muito antes de partir para o espaço estes humanos já estavam inseridos na estrutura social onde o critério para tomada de decisões era o estilo de vida hedônico, como foi dito no inicio.
                A restituição dos sentidos tradicionais ao capitão é o que possibilita a este a tomada de consciência e a possibilidade de julgar se Auto estava certo ou errado, e então, decidir o que fazer para o bem coletivo, uma ação individual, mas também política.

Envolvimento: a decisão pela experiência como alternativa para a cura.


                Mas ainda há outra tese presente no filme. A de que a mudança social não pode ser apreendida apenas teoricamente ela deve ser experimentada nas ações em direção ao outro.
                EVA só é despertada do seu entorpecimento para o mundo do trabalho quando o capitão instala nela um projetor holográfico que projeta as imagens de sua câmera de segurança. Ali ela entra em contato com o cuidado que Wall-E dispensou a ela, mesmo quando ela não podia ver esse cuidado. É então que EVA percebe a alternativa para sua forma de vida que é proposta na performance prática de Wall-E.
                Essa performance libertadora, de Wall-E, atinge não somente a EVA, mas ao capitão também, que presencia seu sacrifício ao proteger a planta de Auto, ao pequeno Mo que presencia a decisão de Wall-E de EVA deveria cumprir sua diretriz levando os humanos de volta para casa em detrimento de risco da própria “vida” Wall-E.
                A cena final, onde a subjetivação∕personalização das relações e do próprio indivíduo é devolvida a Wall-E pelo “beijo” de EVA também indica a necessidade desse contato experiencial para a “libertação” da despersonalização que Wall-E tinha passado.
                Essa cena dialoga com a cena de outro filme, a saber, Gênio Indomável. Na cena na conversa no parque entre o terapeuta Sean e o problemático paciente Will Hunting o terapeuta alerta. O conhecimento teórico é capaz apenas de produzir mais psicopatologias e espírito de competitividade. Para a humanização de um relacionamento é necessário que haja imersão na experiência, que haja interesse de ambas as partes e abertura. Que haja envolvimento e experiência. Relações superficiais como as criadas no mundo do trabalho e consumo só podem produzir mais experiências superficiais e destituídas de sentido, aprofundando o problema já existente.
                Wall-E é um conto infantil que faz uma critica inteligente a estrutura das relações contemporâneas baseadas na segurança pueril criada pelo mundo do trabalho, pela incerteza da falta de referenciais de éticos (tradição) para tomada de decisões e que fala da consequência subjetiva destas transformações contemporâneas, tanto quanto das consequências macropolíticas que elas ganham.

Referencias:


ARENDT, Hannah. A tradição e a época moderna. In: Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 43-68.
BAUMAN, Zygmunt. Critica – privatizada e desarmada. In: A sociedade individualizada. Vidas contadas e histórias vividas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 129 – 141.
FROMM, Erich. Os dois aspectos da liberdade para o homem moderno. In: O medo à liberdade. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983, p. 90 – 113.
GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
HABERMAS, Jürgen. A entrada na pós-modernidade: Nietzsche como ponto de inflexão. In: O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 121-151.
MARCUSE, Hebert. A ideologia da sociedade industrial. O homem unidimensional. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1973.
PIRES, Anderson. A sociedade do glamour, ética do consumismo e a ontologia da verdade. In: Revista brasileira de psicoteologia. Disponível em: <>. Acessado em: 22-04-2013.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.







Nenhum comentário:

Postar um comentário

Estudos Anticoloniais, Pós-Coloniais, Decoloniais, Subalternos e Epistemologias do Sul

Recebi esta lista no whatsapp, enviada por uma amiga. Reposto o texto na integra para quem interessar começar a se aprofundar no tema. ...