terça-feira, 4 de novembro de 2014

Beijo na boca - Um breve resumo da história social do beijo na boca

Beija eu;
Beija eu;
Deixa que eu...
Beija eu.

E receba o que seja seu
Anoiteça e amanheça eu

Seja eu,
Deixa que eu seja eu.
E aceita
O que seja seu.
Então deita e aceita eu.

Molha eu,
Seca eu,
Deixa que eu seja o céu
E receba
O que seja seu.
Anoiteça e amanheça eu.

Então beba e receba
Meu corpo no seu corpo,
Eu no meu corpo,
Deixa,
Eu me deixo
Anoiteça e amanheça



Marisa Monte.


                A forma de expressar afetividade e intimidade em público em nossa moderna sociedade ocidental ainda é o beijo. Em romances, filmes, novelas e outras expressões artísticas o beijo figura como forma de demonstração da intimidade, da proximidade e do desejo de estar junto. A ideia transmitida na música acima é a de união, a união dos corpos por meio do ato de beijar. No beijo há um sentido antropofágico e de certa uma vontade de posse, também presente no ato sexual, é isso que afirma o filosofo Otto Best. “O sentimento amoroso carrega a intenção de incorporar, de comer o objeto de nosso afeto. O beijo é a manifestação possível desse desejo”, afirma.
            A tradição de roçar lábios com lábios provavelmente veio do Oriente há séculos, possuía uma ética e uma moral bem diferentes da que vige em nossos dias.
Através dos séculos de sua existência o beijo passou a designar, nas culturas em que ele esteve presente um sinal de aproximação e de inclusão. Mas, por trás do fato de que colocar a língua na boca de outra pessoa e partilhar saliva alheia ter ganhado um significado diferente daquele da antiguidade, podem estar as sucessivas mudanças sociais e o atual critério legitimador da tomada de decisões em nossa destradicionalizada sociedade ocidental. O que interessa esse ato tão intimo à sociologia? É o que veremos a seguir. 
            O registro mais antigo sobre o beijo na boca, foi encontrado em um livro védico que data de aproximadamente 1200 a C., o Satapatha[1], e diz: “amo beber o vapor dos seus lábios”. Relativamente próximo desta data e ao contexto geográfico em que foi escrito temos o Mahabarata[2], mas com um texto mais explicito em relação a forma de beijar ele diz: “Pôs a sua boca em minha boca, fez um barulho e isso produziu em mim prazer”.
Somente mais tarde, entre 400 a 200 d. C. O Kama Sutra apresentou uma versão mais amadurecida do assunto trazendo cerca de 200 passagens detalhando a moral e a ética do beijo. Nele se descreve, por exemplo, os três tipos de beijo que uma moça daquela sociedade podia ter acesso: o beijo “nominal”, o “palpitante” e o de “toque”.
Assim também a sociedade romana que assimilou a prática do beijo na boca também dividiu a pratica de beijar em três convenções, adquirida provavelmente a partir das conquistas que o império romano empreendeu sobre parte da Ásia a partir do século IV a C. Em Roma havia o oscupulum, o beijo de amizade; o bastium, mais sensual, entre homem e mulher; e o savium descrito pelo poeta como “de língua, voluptuoso e vergonhoso”.
Os gregos não ficaram de fora e também aderiram a pratica do beijo na boca sujeitando-a aos seus próprios contornos culturais dando-lhe funções quase burocráticas. Beijava-se para selar um acordo e para demonstrar respeito, cidadãos de mesmo nível social encostavam os lábios, se um dos cidadãos fosse de uma casta inferior o beijo era no rosto e se a casta fosse muito inferior, o que pertencia a casta inferior deveria beijar os pés daquele que era superior.

            Esta tradição foi transmitida ao longo dos séculos e foi incorporada de diversas formas, a igreja cristã, por exemplo, sacralizou o beijo ao incorporá-lo como forma de culto instando os fiéis a beijar os pés dos santos, durante o século IV d. C., e tentou banir a prática do beijo no século XII[3]. Curiosamente no século XVII o savium romano voltou com força, principalmente entre os franceses, o período coincide com o acontecimento da “revolução das luzes” no continente europeu e a expressividade com a qual os franceses se beijavam rendeu ao beijo de língua o apelido dado pelos puritanos ingleses, anos mais tarde, ao savium de beijo francês, apelido este que vigora até hoje.
            Mas nem todos os povos conheceram esta prática, as etnias indígenas no Brasil, por exemplo, são totalmente estranhas à prática de beijar na boca e os incas pensavam que se duas pessoas tocassem uma na boca da outra a alma de um deles poderia ser sugada.
            Resta-nos perguntar: por que na sociedade contemporânea a prática de beijar torna-se uma ação tão importante?
            O psicanalista francês Charles Melman (apud TAVARES, 2009) afirma que o homem contemporâneo prioriza a estética em detrimento da ética e que o prazer tornou-se critério de legitimação das escolhas feitas hoje em dia. “Hoje a saúde mental já não se origina mais da harmonia com o ideal de cada um, mas do objeto que possa trazer satisfação. Não há limites... Essa nova economia psíquica é organizada pela exibição de prazer e implica em novos deveres, dificuldades e sofrimentos. (...) A posição ética tradicional, metafísica, política, que permitia às pessoas orientar seu pensamento, está em falta. O excesso se tornou a norma” (TAVARES, 2009).
            Concordando com Melman, o sociólogo Anthony Giddens (1993) afirma que é a mudança social de uma organização tradicional para uma destradicionalizada que “inverte” a pauta de temas onde a compulsão torna-se normal, ou melhor, onde torna-se comum aquilo que fora, em outros tempos, considerado patológico.
Giddens enumera duas razões para justapôr compulsão/vício à tradição: a primeira é nos concentrarmos nos traços compulsivos da modernidade como tal; a segunda é que o tema do vício proporciona um esclarecimento inicial das características de uma ordem pós-tradicional.
            Nas sociedades pré-modernas, a tradição e a rotinização da conduta estão relacionadas uma à outra. Na sociedade pós-tradicional, ao contrário, a rotinização torna-se vazia, a menos que ajustada aos processos de um tipo de monitoramento institucional que ofereça discursivamente razões para tal.
Não há lógica ou autenticidade moral em fazer hoje o que fizemos ontem. Por isso faz sentido dissociar praticas sociais, como o beijo de seu contexto inicial de regulação de interações sociais conectando-o à uma nova forma de interação social como a prevalência do desejo libidinoso como afirma Melman e sem nenhum fundo moral ou ético como no passado, senão o da instituição do primado do desejo de satisfação do ego dissociado de qualquer norma social extra-indivíduo.
            Ao analisar estes aspectos que encontram em fatores aparentemente transitórios e sem significado aspectos do macro-social, quer dizer, nos comportamentos individuais traços da cultura e da maneira de ser de um povo a sociologia pode explicar motivações de ações que aparentemente não teriam ligação senão com uma opção individual. A sociologia não implica em ação e sim na compreensão dos homens e mulheres, suas instituições, sua história, suas paixões. O sociólogo tem então como seu habitat natural a reunião humana.
            A mudança da função do beijo, a sua banalização no cotidiano contemporâneo é um forte indicio da ruptura da modernidade com a tradição. Nesta ruptura pode se perceber o indicio da sociedade hedocapitalista tanto nos lucros que a indústria romântica afere com suas produções cinematográficas, literárias ou musicais quanto na prerrogativa altamente individual que o beijo, no ficar, no namoro ou no casamento ganhou.
            Ao se beijar hoje, buscamos nos aproximar de quem beijamos, um traço da tradição ainda está presente, pois o ato indica aproximação. Porém, mais forte do que uma função social de aproximação esta o teor altamente prazeroso que buscamos usufruir ao beijarmos.


[1]             Um livro de textos sagrados em que se baseia o bramanismo.
[2]    Poema épico com mais de 200 mil versos compilados em aproximadamente 1000 a C., ambos os textos, ibidem, foram escritos no Oriente por povos hindus.
[3]    O Papa Inocêncio III travaria uma verdadeira cruzada contra o beijo banindo-o dos ritos religiosos e proibindo-o na vida secular. “Beijo com objetivo de fornicação é pecado mortal, mesmo que a fornicação não se consume”, dizia a Sua Santidade.


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