Beija eu;
Beija eu;
Deixa que eu...
Beija eu.
E receba o que seja seu
Anoiteça e amanheça eu
Seja eu,
Deixa que eu seja eu.
E aceita
O que seja seu.
Então deita e aceita eu.
Molha eu,
Seca eu,
Deixa que eu seja o céu
E receba
O que seja seu.
Anoiteça e amanheça eu.
Então beba e receba
Meu corpo no seu corpo,
Eu no meu corpo,
Deixa,
Eu me deixo
Anoiteça e amanheça
Marisa Monte.
A forma de expressar afetividade e intimidade em público em nossa
moderna sociedade ocidental ainda é o beijo. Em romances, filmes, novelas e
outras expressões artísticas o beijo figura como forma de demonstração da
intimidade, da proximidade e do desejo de estar junto. A ideia transmitida na
música acima é a de união, a união dos corpos por meio do ato de beijar. No
beijo há um sentido antropofágico e de certa uma vontade de posse, também
presente no ato sexual, é isso que afirma o filosofo Otto Best. “O sentimento
amoroso carrega a intenção de incorporar, de comer o objeto de nosso afeto. O
beijo é a manifestação possível desse desejo”, afirma.
Através dos séculos de sua existência o
beijo passou a designar, nas culturas em que ele esteve presente um sinal de
aproximação e de inclusão. Mas, por trás do fato de que colocar a língua na
boca de outra pessoa e partilhar saliva alheia ter ganhado um significado
diferente daquele da antiguidade, podem estar as sucessivas mudanças sociais e
o atual critério legitimador da tomada de decisões em nossa destradicionalizada
sociedade ocidental. O que interessa esse ato tão intimo à sociologia? É o que
veremos a seguir.
O registro mais
antigo sobre o beijo na boca, foi encontrado em um livro védico que data de
aproximadamente 1200 a C., o Satapatha[1], e
diz: “amo beber o vapor dos seus lábios”. Relativamente próximo desta data e ao
contexto geográfico em que foi escrito temos o Mahabarata[2],
mas com um texto mais explicito em relação a forma de beijar ele diz: “Pôs a
sua boca em minha boca, fez um barulho e isso produziu em mim prazer”.
Somente mais tarde, entre 400 a 200 d. C.
O Kama Sutra apresentou uma versão mais amadurecida do assunto trazendo cerca
de 200 passagens detalhando a moral e a ética do beijo. Nele se descreve, por
exemplo, os três tipos de beijo que uma moça daquela sociedade podia ter
acesso: o beijo “nominal”, o “palpitante” e o de “toque”.
Assim também a sociedade romana que
assimilou a prática do beijo na boca também dividiu a pratica de beijar em três
convenções, adquirida provavelmente a partir das conquistas que o império
romano empreendeu sobre parte da Ásia a partir do século IV a C. Em Roma havia
o oscupulum, o beijo de amizade; o bastium, mais sensual, entre
homem e mulher; e o savium descrito pelo poeta como “de língua,
voluptuoso e vergonhoso”.
Os gregos não ficaram de fora e também aderiram
a pratica do beijo na boca sujeitando-a aos seus próprios contornos culturais
dando-lhe funções quase burocráticas. Beijava-se para selar um acordo e para
demonstrar respeito, cidadãos de mesmo nível social encostavam os lábios, se um
dos cidadãos fosse de uma casta inferior o beijo era no rosto e se a casta
fosse muito inferior, o que pertencia a casta inferior deveria beijar os pés
daquele que era superior.
Esta
tradição foi transmitida ao longo dos séculos e foi incorporada de diversas
formas, a igreja cristã, por exemplo, sacralizou o beijo ao incorporá-lo como
forma de culto instando os fiéis a beijar os pés dos santos, durante o século
IV d. C., e tentou banir a prática do beijo no século XII[3].
Curiosamente no século XVII o savium romano voltou com força,
principalmente entre os franceses, o período coincide com o acontecimento da
“revolução das luzes” no continente europeu e a expressividade com a qual os
franceses se beijavam rendeu ao beijo de língua o apelido dado pelos puritanos
ingleses, anos mais tarde, ao savium de beijo francês, apelido este que vigora
até hoje.
Mas
nem todos os povos conheceram esta prática, as etnias indígenas no Brasil, por
exemplo, são totalmente estranhas à prática de beijar na boca e os incas
pensavam que se duas pessoas tocassem uma na boca da outra a alma de um deles
poderia ser sugada.
O
psicanalista francês Charles Melman (apud
TAVARES, 2009) afirma que o homem contemporâneo prioriza a estética em
detrimento da ética e que o prazer tornou-se critério de legitimação das
escolhas feitas hoje em dia. “Hoje a saúde mental já não se origina mais da
harmonia com o ideal de cada um, mas do objeto que possa trazer satisfação. Não
há limites... Essa nova economia psíquica é organizada pela exibição de prazer
e implica em novos deveres, dificuldades e sofrimentos. (...) A posição ética
tradicional, metafísica, política, que permitia às pessoas orientar seu pensamento,
está em falta. O excesso se tornou a norma” (TAVARES, 2009).
Concordando
com Melman, o sociólogo Anthony Giddens (1993) afirma que é a mudança social de
uma organização tradicional para uma destradicionalizada que “inverte” a pauta
de temas onde a compulsão torna-se normal, ou melhor, onde torna-se comum
aquilo que fora, em outros tempos, considerado patológico.
Giddens enumera duas razões para justapôr
compulsão/vício à tradição: a primeira é nos concentrarmos nos traços
compulsivos da modernidade como tal; a segunda é que o tema do vício
proporciona um esclarecimento inicial das características de uma ordem
pós-tradicional.
Nas
sociedades pré-modernas, a tradição e a rotinização da conduta estão
relacionadas uma à outra. Na sociedade pós-tradicional, ao contrário, a
rotinização torna-se vazia, a menos que ajustada aos processos de um tipo de
monitoramento institucional que ofereça discursivamente razões para tal.
Ao
analisar estes aspectos que encontram em fatores aparentemente transitórios e
sem significado aspectos do macro-social, quer dizer, nos comportamentos
individuais traços da cultura e da maneira de ser de um povo a sociologia pode
explicar motivações de ações que aparentemente não teriam ligação senão com uma
opção individual. A sociologia não implica em ação e sim na compreensão dos
homens e mulheres, suas instituições, sua história, suas paixões. O sociólogo
tem então como seu habitat natural a reunião humana.
A
mudança da função do beijo, a sua banalização no cotidiano contemporâneo é um
forte indicio da ruptura da modernidade com a tradição. Nesta ruptura pode se
perceber o indicio da sociedade hedocapitalista tanto nos lucros que a
indústria romântica afere com suas produções cinematográficas, literárias ou
musicais quanto na prerrogativa altamente individual que o beijo, no ficar, no
namoro ou no casamento ganhou.
Ao
se beijar hoje, buscamos nos aproximar de quem beijamos, um traço da tradição
ainda está presente, pois o ato indica aproximação. Porém, mais forte do que
uma função social de aproximação esta o teor altamente prazeroso que buscamos
usufruir ao beijarmos.
[1] Um
livro de textos sagrados em que se baseia o bramanismo.
[2] Poema épico com mais de 200 mil versos
compilados em aproximadamente 1000 a C., ambos os textos, ibidem, foram
escritos no Oriente por povos hindus.
[3] O Papa Inocêncio III travaria uma verdadeira
cruzada contra o beijo banindo-o dos ritos religiosos e proibindo-o na vida
secular. “Beijo com objetivo de fornicação é pecado mortal, mesmo que a
fornicação não se consume”, dizia a Sua Santidade.
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