Sobre
a dinâmica cultural capitalista e o machismo nos relacionamentos cotidianos -
uma reflexão.
(a
narrativa abaixo realmente aconteceu, mas por motivos de exclerose precoce o
autor (eu) teve que substituir os nomes dos personagens pois já não os lembrava
no momento da escrita)
O
dia estava chuvoso hoje. Por esse motivo, e pelo excesso de trabalho que me
mantinha há alguns dias trancafiado em casa indo apenas para o colégio e
voltando, decidi corrigir algumas provas num café próximo à minha casa. Até aí
tudo bem, nada de estranho. O que ocorreu chegando lá que é o que eu gostaria
de comunicar.
Estava eu a tomar café e a distribuir notas vermelhas, como todo
professor costuma fazer em seu (des)gosto da profissão quando ali chegou também
um jovem e belo casal.
Chamavam
a atenção, eram realmente bonitos. Ambos. Ele, negro, alto, atlético. Vestuário
impecavelmente alinhado, camisa social bem passada com as mangas dobradas até a
altura dos cotovelos e calça igualmente bem alinhada.
Era claro que trabalhava
em alguma empresa privada e tinha posição de destaque ali.Levava pela mão uma
lindissima garota, por volta de vinte anos, cabelos castanhos claros, na altura
dos ombros. Olhos amendoados. Trajava um belo vestido branco preso por um fino
cinto dourado.
A
garota realmente chamava a atenção de todos, foi fácil constatar pelos olhares
que lhe eram dirigidos. Sentaram-se numa mesa muito próxima a minha. Fizeram o
pedido e puseram-se a conversar. Eu
também, após a movimentação da chegada do casal voltei aos meus afazeres. Como
todo bom cidadão que sofre de toque e não se assenta de costas para a porta do
ressinto pois sente a necessidade compulsiva de monitorar a movimentação do
ambiente (está aí minha confissão de toc desenvolvido pela audiência excessiva
de filmes de ação e noticiários policiais).
O que me chamou a atenção, no
entanto, foi a conversa que o casal travou a seguir. (E de antemão adianto,
minha mãe me deu educação, mas eu não aprendi. Mas, mesmo que tivesse
minimamente aprendido não era possível ignorar o casal sem um fone de ouvidos,
e eu não tinha um a mão, poís falavam em um tom um pouco alto).
A principio
ele continuava uma conversa que já vinham tendo antes de entrarem no
ressinto.
-
Mas essa sua prima viu... Ela é muito bonita. Parece com minha ex-namorada.
Gosto de mulheres assim. Louras de olhos claros. O cabelo dela é perfeito. Sabe
que todas as minhas namoradas antes de você eram loiras? Você é muito bonita,
meu amor, não fica grilada. Só estou comentando que a sua prima, que parece com
você tem o cabelo mais lindo. Deve ser genético. Seu cabelo é lindo também, se
fosse mais claro seria perfeito.
Ele,
tocava a mão dela sobre a mesa fazendo carícias e sorrindo levemente. Enquanto
falava também reparava no ambiente ao redor, nas pessoas que estavam no café.Eu
observava tudo pelo reflexo no espelho por detrás do rapaz. Sob a proteção
inexorável dos meus fiéis óculos escuros (não me culpem, uso óculos de sol em
ambiente fechado porque tenho fotosensibilidade... Que diminuam a luz, ora...)
-
Sim, a Maria é muito bonita.
Sussurou
ela claramente querendo por fim ao assunto. Corpo retraído, os olhos
buscavam-no e ao repararem na sondagem que o acompanhante fazia no local,
voltavam para sobre a mesa
-
Todos meus amigos dizem que eu tenho sorte de namorar com você. Que tirei na
loteria porque você é muito linda. Dizem como eu tenho sorte de namorar com
você de ser bonita assim e ainda estudar direito. Bonita e inteligente. Fiquei
feliz por ter se dado bem com a minha família, fiquei algum tempo pensando em
te apresentar. Porque eles já eram acostumados com a Joana, minha ex. Mas, na
hora que chegamos na festa de noivado do Claudio. Você viu, todos pararam para
reparar. Somos um casal perfeito.
Ela
sorriu com a memória. Parecia envaidecida. A memória do momento de distinção a
animou. Ela endireitou a postura na cadeira, olhou para ele com um sorriso e
ele voltou a fixar o olhar nela.
-
Você acha que eles gostaram de mim?
Perguntou
animada em busca do sim de aceitação.
-
Claro, quem não gostaria de você. E ainda está comigo... Você me faz feliz...
Respondeu
romanticamente o jovem rapaz, dessa vez fitando-a romanticamente nos olhos.
-
Você também me faz feliz. Gosto muito de estar com você. Esses ultimos dois
meses tem sido maravilhosos.
Retrucou
de forma também melosa a menina. Ele olhou ao redor e apontou com o olhar.
-
Acho que o seu cabelo ia ficar bonito daquela cor.
Ela
olhou e viu a moça loura que saia pela porta.
-
Mas, você viu que eu mudei? Hoje de manhã fui na cabeleleira, fiz a unha...
Ela
enrigecia a mão na intenção de que o acompanhante olhasse para a cor do esmalte
em suas unhas (era azul claro, muito bonito) e com a mão livre arrumava o
cabelo.
-
Hmmhmmm...
Ficou
muito bom. Assentiu ele com um sorriso nos lábios.
-
Só falei porque semana que vem vai ser o aniversário da Antonia e gostaria que
você fosse comigo. Dá no sábado de noite. Dá para você ir?
Falou
ele com vozinha um pouco melosa e fazendo uma estranha careta que - entre os
dois - comunicava afeição (mas, que toda audiência, como eu, convordava que
deveria ter guardado para um momento mais privado).
-
Vou sim. vou marcar o salão para sábado de manhã. Para me arrumar para você.
Ficar mais bonita...
Vou
parar por aqui. A narrativa trata de um encontro casual. Um diálogo entre dois
jovens recém enamorados, que comentam gostos e fazem planos. No entanto, em
dada altura do desenrolar me veio uma idéia, entre a auscuta do diálogos e as
teorias que lia nas provas.
"E
se fosse ela quem dissesse que o primo dele tinha ombros largos como o do
ex-namorado? E se ela habilidosamente sugerisse que ele fosse para a academia
ganhar algumas medidas no torax e nos ombros para agradá-la, ou algo mais
simples, que deixasse o cabelo crescer, pois, hipoteticamente, seus parceiros
anteriores eram cabeludos e isto estaria mais ao seu gosto".
Pensei:
"e
se ela fosse a pessoa a apresentar o parceiro como o troféu a família e
amigos?"
Será
que ele aceitaria as comparações e o constrangimento de receber orientações
sobre como ficar com a aparência mais satisfatória com a mesma atitude servil
que ela aceitou?
Pensei,
e nesse ponto parei um pouco de corrigir as provas para não me atrapalhar, no
quanto esta menina deve ter passado por uma vida de constrangimentos em busca
por aceitação (já que ela parecia treinada na arte de ser servil).
Nossa
sociedade é caracterizada por uma cultura de racionalização da vida em busca de
produtividade, de competitividade, de escassez de afeto em busca de eficiência.
Tais características se estruturaram em função da manutenção da eficácia de um
modo produtivo que acompanhasse a velocidade do desenvolvimento tecnológico.
Por conta dessas características nossas relações e interações cotidianos se
tornaram pragmáticas, funcionais e pouco afetivas e inclusivas. Nos tornamos
seres em busca de afeto. Além disso, somos herdeiros de uma tradição patriarcal. Esta salienta a primazia do masculino sobre o feminino, enaltece um modelo predatório para os homens e servil para as mulheres.
Nesse
ambiente sócio-cultural a estética e a sexualização dos
relacionamentos surgiu
como uma forma paleativa de suprir a
necessidade básica de aceitação, de afetividade e de acolhimento.
Nesse
sentido, os dois personagens da minha observação são vitimas e reprodutores de
uma cultura que objetifica o sujeito em interação em busca de uma satisfação
hedonica. Ele, preocupado com a aparência dele (e sobretudo dela). E ela também
preocupada com a aparência (ambos apresentavam a preocupação com a estética
vestindo-se tão bem num lugar tão comum e demonstrando receber tão bem os
olhares de admiração, cultura narcisica que vivemos), mas também através de uma
atitude aquiescente dos comentários que claramente a constrangiam.
Perguntei-me
se esses dois não sofriam de algo que ouvi de um antigo orientador sob o nome
da síndrome do medo de perder. Complexo sóciopsicológico gerado na cultura
capitalista em que o sujeito assimila o ethos do capitalismo, a saber, somente
serei feliz se acumular experiências hedônicas, por meio das minhas interações
e sucessos no campo profissional, afetivo, escolar e etc. Não
posso perder meu parceiro, nem o prestígio social que granjeio com ele. Minha
parceira precisa ser suficientemente bonita para superar a beleza das parceiras
anteriores e lograr para mim toda a atenção (leia-se no lugar de atenção afeto)
que me foi historicamente negado e que eu acho que tenho direito de ter.
Não
quero dirimir aqui, com os comentários feitos imediatamente o conteúdo
extremamente machista apresentado na atitude do rapaz (e isto porque eu ainda
não quero entrar na discussão de raça que perpassa aquela narrativa). Como eu
perguntei acima, teria ele aceitado com a mesma atitude se fosse ela a
executora dos comentários.
Se
fosse ela a olhar lascívamente cada homem que entrava ou saia daquele café no
meio tempo em que estiveram lá?Suspeito que a resposta a esta questão é um
sonoro NÃO. Penso isto
porque ao comentar o fato com um professor amigo meu, a mente deste se fixou
não na atitude de objetificação da garota, mas na questão se ela era ou não
gostosa (com pedidos para que eu a descrevesse em termos comparativos com
outras garotas de nosso ambiente profissional).
Vivemos
numa cultura machista, aquela mesma cultura que sexualiza os comportamentos e
que instaura as relações como meios para satisfação dos desejos libdinosos
tornando sujeitos em objetos e com isso intensificando o processo de
esterelização afetiva dos relacionamentos. Um machismo que concede ao macho a
prerrogativa de desejar a prima da namorada, sugerir que a namorada mude a
aparência para satisfazer a sua fantasia e perscrutar o ambiente em busca de
corpos que lhe satisfaçam a necessidade de "comer com os olhos"
aquelas que não estão ao alcance das mãos, mesmo que a propria namorada esteja
na presença do indivíduo emitindo sinais claros de que sua autoimagem, sua
autoestima e sua capacidade de se reconhecer como portadora de qualidades, por
causa do comportamento deste indivíduo, está em risco. Nós homens temos uma conscenção cultural
para agirmos assim. É o comportamento do macho.
Nessa
manhã pensei sobre isso antes de terminar de corrigir as provas que versavam
sobre processo de alienação do segundo ano do ensino médio e senti a
necessidade de por em algumas linhas esta reflexão que na verdade é uma
manifestação de gratidão a algumas mulheres fortes que tem lutado para mudar
este contexto, como minhas mestras para sempre, Michele Franco, Ivanilde, Maria
Luiza, Najla Fratari, Simone, Marcilaine e amigas queridas Marina, Lauanda.
Pessoas
que tem me mostrado com diálogos e colocações sempre muito espirituosas o novo
sentido de ser macho. Aquele que valoriza a mulher porque ela é um ser humano e
não porque com o cabelo louro irá se parecer mais com... seja quem for...
Mulheres
são importantes pelo seu conteúdo, por suas lutas, por suas escolhas,
ideologias e sentimentos e não pelas formas de seus quadris e cochas. Mulheres são seres humanos e tem valor intrínseco em si. Espero
que minhas alunas que leêm esse blog possam perceber isso, pelas muitas letras
e linhas que escrevo e pelos gestos que tento empreender no cotidiano.
Olá, então, sou homem e convivi a vida inteira somente com mulheres, tenho mais facilidade de ser amigo de mulheres e não de homens. Antes que alguém tenha algum pré conceito em formação, sou heterossexual e tenho consciência do respeito que todos devemos ter para com o próximo.
ResponderExcluirAgora, sobre o texto, não sei se é verdade ou não, mas que o acontecimento não tem nada haver com machismo mas sim com a maneira que nossa sociedade foi deixando os hábitos e comportamentos serem levados.
Eu já estive do lado da mesa onde a moça estava, passei por relacionamentos que a moça (minha ex namorada) sempre me rebaixava e elogiava meus amigos e parentes, dizia meus defeitos e assuntos chatos, motivos os quais eu terminava os relacionamentos, pois para amar alguém eu tenho que me amar primeiro.
As mulheres e homens precisam amar a si primeiro para depois entrar em um relacionamento para amar o outro, respeitar e dar respeito. Isso é o que falta na sociedade.
Ficar apontando para alguém que é ou não feminista ou machista, em minha simples opinião é criar mais conflitos e separatismo.