terça-feira, 4 de novembro de 2014

Sobre o Machismo e a cultura da racionalização dos relacionamentos


Sobre a dinâmica cultural capitalista e o machismo nos relacionamentos cotidianos - uma reflexão.
(a narrativa abaixo realmente aconteceu, mas por motivos de exclerose precoce o autor (eu) teve que substituir os nomes dos personagens pois já não os lembrava no momento da escrita)


O dia estava chuvoso hoje. Por esse motivo, e pelo excesso de trabalho que me mantinha há alguns dias trancafiado em casa indo apenas para o colégio e voltando, decidi corrigir algumas provas num café próximo à minha casa. Até aí tudo bem, nada de estranho. O que ocorreu chegando lá que é o que eu gostaria de comunicar.
Estava eu a tomar café e a distribuir notas vermelhas, como todo professor costuma fazer em seu (des)gosto da profissão quando ali chegou também um jovem e belo casal.
Chamavam a atenção, eram realmente bonitos. Ambos. Ele, negro, alto, atlético. Vestuário impecavelmente alinhado, camisa social bem passada com as mangas dobradas até a altura dos cotovelos e calça igualmente bem alinhada. 
Era claro que trabalhava em alguma empresa privada e tinha posição de destaque ali.Levava pela mão uma lindissima garota, por volta de vinte anos, cabelos castanhos claros, na altura dos ombros. Olhos amendoados. Trajava um belo vestido branco preso por um fino cinto dourado.
A garota realmente chamava a atenção de todos, foi fácil constatar pelos olhares que lhe eram dirigidos. Sentaram-se numa mesa muito próxima a minha. Fizeram o pedido e puseram-se a conversar. Eu também, após a movimentação da chegada do casal voltei aos meus afazeres. Como todo bom cidadão que sofre de toque e não se assenta de costas para a porta do ressinto pois sente a necessidade compulsiva de monitorar a movimentação do ambiente (está aí minha confissão de toc desenvolvido pela audiência excessiva de filmes de ação e noticiários policiais). 
O que me chamou a atenção, no entanto, foi a conversa que o casal travou a seguir. (E de antemão adianto, minha mãe me deu educação, mas eu não aprendi. Mas, mesmo que tivesse minimamente aprendido não era possível ignorar o casal sem um fone de ouvidos, e eu não tinha um a mão, poís falavam em um tom um pouco alto).

A principio ele continuava uma conversa que já vinham tendo antes de entrarem no ressinto. 

- Mas essa sua prima viu... Ela é muito bonita. Parece com minha ex-namorada. Gosto de mulheres assim. Louras de olhos claros. O cabelo dela é perfeito. Sabe que todas as minhas namoradas antes de você eram loiras? Você é muito bonita, meu amor, não fica grilada. Só estou comentando que a sua prima, que parece com você tem o cabelo mais lindo. Deve ser genético. Seu cabelo é lindo também, se fosse mais claro seria perfeito.

Ele, tocava a mão dela sobre a mesa fazendo carícias e sorrindo levemente. Enquanto falava também reparava no ambiente ao redor, nas pessoas que estavam no café.Eu observava tudo pelo reflexo no espelho por detrás do rapaz. Sob a proteção inexorável dos meus fiéis óculos escuros (não me culpem, uso óculos de sol em ambiente fechado porque tenho fotosensibilidade... Que diminuam a luz, ora...)

- Sim, a Maria é muito bonita.

Sussurou ela claramente querendo por fim ao assunto. Corpo retraído, os olhos buscavam-no e ao repararem na sondagem que o acompanhante fazia no local, voltavam para sobre a mesa

- Todos meus amigos dizem que eu tenho sorte de namorar com você. Que tirei na loteria porque você é muito linda. Dizem como eu tenho sorte de namorar com você de ser bonita assim e ainda estudar direito. Bonita e inteligente. Fiquei feliz por ter se dado bem com a minha família, fiquei algum tempo pensando em te apresentar. Porque eles já eram acostumados com a Joana, minha ex. Mas, na hora que chegamos na festa de noivado do Claudio. Você viu, todos pararam para reparar. Somos um casal perfeito.

Ela sorriu com a memória. Parecia envaidecida. A memória do momento de distinção a animou. Ela endireitou a postura na cadeira, olhou para ele com um sorriso e ele voltou a fixar o olhar nela.

- Você acha que eles gostaram de mim?

Perguntou animada em busca do sim de aceitação.

- Claro, quem não gostaria de você. E ainda está comigo... Você me faz feliz...

Respondeu romanticamente o jovem rapaz, dessa vez fitando-a romanticamente nos olhos.

- Você também me faz feliz. Gosto muito de estar com você. Esses ultimos dois meses tem sido maravilhosos.

Retrucou de forma também melosa a menina. Ele olhou ao redor e apontou com o olhar.

- Acho que o seu cabelo ia ficar bonito daquela cor.

Ela olhou e viu a moça loura que saia pela porta.

- Mas, você viu que eu mudei? Hoje de manhã fui na cabeleleira, fiz a unha...

Ela enrigecia a mão na intenção de que o acompanhante olhasse para a cor do esmalte em suas unhas (era azul claro, muito bonito) e com a mão livre arrumava o cabelo.

- Hmmhmmm...

Ficou muito bom. Assentiu ele com um sorriso nos lábios.

- Só falei porque semana que vem vai ser o aniversário da Antonia e gostaria que você fosse comigo. Dá no sábado de noite. Dá para você ir?

Falou ele com vozinha um pouco melosa e fazendo uma estranha careta que - entre os dois - comunicava afeição (mas, que toda audiência, como eu, convordava que deveria ter guardado para um momento mais privado).

- Vou sim. vou marcar o salão para sábado de manhã. Para me arrumar para você. Ficar mais bonita...


Vou parar por aqui. A narrativa trata de um encontro casual. Um diálogo entre dois jovens recém enamorados, que comentam gostos e fazem planos. No entanto, em dada altura do desenrolar me veio uma idéia, entre a auscuta do diálogos e as teorias que lia nas provas.
"E se fosse ela quem dissesse que o primo dele tinha ombros largos como o do ex-namorado? E se ela habilidosamente sugerisse que ele fosse para a academia ganhar algumas medidas no torax e nos ombros para agradá-la, ou algo mais simples, que deixasse o cabelo crescer, pois, hipoteticamente, seus parceiros anteriores eram cabeludos e isto estaria mais ao seu gosto".
Pensei:
"e se ela fosse a pessoa a apresentar o parceiro como o troféu a família e amigos?"


Será que ele aceitaria as comparações e o constrangimento de receber orientações sobre como ficar com a aparência mais satisfatória com a mesma atitude servil que ela aceitou?
Pensei, e nesse ponto parei um pouco de corrigir as provas para não me atrapalhar, no quanto esta menina deve ter passado por uma vida de constrangimentos em busca por aceitação (já que ela parecia treinada na arte de ser servil).

Nossa sociedade é caracterizada por uma cultura de racionalização da vida em busca de produtividade, de competitividade, de escassez de afeto em busca de eficiência. Tais características se estruturaram em função da manutenção da eficácia de um modo produtivo que acompanhasse a velocidade do desenvolvimento tecnológico. Por conta dessas características nossas relações e interações cotidianos se tornaram pragmáticas, funcionais e pouco afetivas e inclusivas. Nos tornamos seres em busca de afeto. Além disso, somos herdeiros de uma tradição patriarcal. Esta salienta a primazia do masculino sobre o feminino, enaltece um modelo predatório para os homens e servil para as mulheres. 

Nesse ambiente sócio-cultural a estética e a sexualização dos relacionamentos surgiu como uma forma paleativa de suprir a necessidade básica de aceitação, de afetividade e de acolhimento.
Nesse sentido, os dois personagens da minha observação são vitimas e reprodutores de uma cultura que objetifica o sujeito em interação em busca de uma satisfação hedonica. Ele, preocupado com a aparência dele (e sobretudo dela). E ela também preocupada com a aparência (ambos apresentavam a preocupação com a estética vestindo-se tão bem num lugar tão comum e demonstrando receber tão bem os olhares de admiração, cultura narcisica que vivemos), mas também através de uma atitude aquiescente dos comentários que claramente a constrangiam.

Perguntei-me se esses dois não sofriam de algo que ouvi de um antigo orientador sob o nome da síndrome do medo de perder. Complexo sóciopsicológico gerado na cultura capitalista em que o sujeito assimila o ethos do capitalismo, a saber, somente serei feliz se acumular experiências hedônicas, por meio das minhas interações e sucessos no campo profissional, afetivo, escolar e etc. Não posso perder meu parceiro, nem o prestígio social que granjeio com ele. Minha parceira precisa ser suficientemente bonita para superar a beleza das parceiras anteriores e lograr para mim toda a atenção (leia-se no lugar de atenção afeto) que me foi historicamente negado e que eu acho que tenho direito de ter.

Não quero dirimir aqui, com os comentários feitos imediatamente o conteúdo extremamente machista apresentado na atitude do rapaz (e isto porque eu ainda não quero entrar na discussão de raça que perpassa aquela narrativa). Como eu perguntei acima, teria ele aceitado com a mesma atitude se fosse ela a executora dos comentários.
Se fosse ela a olhar lascívamente cada homem que entrava ou saia daquele café no meio tempo em que estiveram lá?Suspeito que a resposta a esta questão é um sonoro NÃO. Penso isto porque ao comentar o fato com um professor amigo meu, a mente deste se fixou não na atitude de objetificação da garota, mas na questão se ela era ou não gostosa (com pedidos para que eu a descrevesse em termos comparativos com outras garotas de nosso ambiente profissional).

Vivemos numa cultura machista, aquela mesma cultura que sexualiza os comportamentos e que instaura as relações como meios para satisfação dos desejos libdinosos tornando sujeitos em objetos e com isso intensificando o processo de esterelização afetiva dos relacionamentos. Um machismo que concede ao macho a prerrogativa de desejar a prima da namorada, sugerir que a namorada mude a aparência para satisfazer a sua fantasia e perscrutar o ambiente em busca de corpos que lhe satisfaçam a necessidade de "comer com os olhos" aquelas que não estão ao alcance das mãos, mesmo que a propria namorada esteja na presença do indivíduo emitindo sinais claros de que sua autoimagem, sua autoestima e sua capacidade de se reconhecer como portadora de qualidades, por causa do comportamento deste indivíduo, está em risco. Nós homens temos uma conscenção cultural para agirmos assim. É o comportamento do macho. 

Nessa manhã pensei sobre isso antes de terminar de corrigir as provas que versavam sobre processo de alienação do segundo ano do ensino médio e senti a necessidade de por em algumas linhas esta reflexão que na verdade é uma manifestação de gratidão a algumas mulheres fortes que tem lutado para mudar este contexto, como minhas mestras para sempre, Michele Franco, Ivanilde, Maria Luiza, Najla Fratari, Simone, Marcilaine e amigas queridas Marina, Lauanda.
 Pessoas que tem me mostrado com diálogos e colocações sempre muito espirituosas o novo sentido de ser macho. Aquele que valoriza a mulher porque ela é um ser humano e não porque com o cabelo louro irá se parecer mais com... seja quem for...
Mulheres são importantes pelo seu conteúdo, por suas lutas, por suas escolhas, ideologias e sentimentos e não pelas formas de seus quadris e cochas. Mulheres são seres humanos e tem valor intrínseco em si. Espero que minhas alunas que leêm esse blog possam perceber isso, pelas muitas letras e linhas que escrevo e pelos gestos que tento empreender no cotidiano.




Um comentário:

  1. Olá, então, sou homem e convivi a vida inteira somente com mulheres, tenho mais facilidade de ser amigo de mulheres e não de homens. Antes que alguém tenha algum pré conceito em formação, sou heterossexual e tenho consciência do respeito que todos devemos ter para com o próximo.
    Agora, sobre o texto, não sei se é verdade ou não, mas que o acontecimento não tem nada haver com machismo mas sim com a maneira que nossa sociedade foi deixando os hábitos e comportamentos serem levados.
    Eu já estive do lado da mesa onde a moça estava, passei por relacionamentos que a moça (minha ex namorada) sempre me rebaixava e elogiava meus amigos e parentes, dizia meus defeitos e assuntos chatos, motivos os quais eu terminava os relacionamentos, pois para amar alguém eu tenho que me amar primeiro.
    As mulheres e homens precisam amar a si primeiro para depois entrar em um relacionamento para amar o outro, respeitar e dar respeito. Isso é o que falta na sociedade.
    Ficar apontando para alguém que é ou não feminista ou machista, em minha simples opinião é criar mais conflitos e separatismo.

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